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  • 25/fev 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    Era sábado. O azul estava ensolarado. A luz solar deixou a manhã esperançada. Sanhaços e bem-te-vis tocavam a alvorada na varanda em busca de comida. Subversivamente os raios do Sol entravam pelas frestas da janela que se encontravam atrás da cortina. Como medida protetiva, falei para a Marta:

    – Vamos fugir? Vamos nos esconder em alguma livraria?…

    Ela topou…

    Depois do café, de colocar água nas plantas, optamos por quebrar a rotina na tentativa de superar a tristeza que ainda está em nosso peito pela partida do amigo Mussel, ex-professor dela e um grande defensor das causas trabalhistas dos profissionais de Educação. Os sindicalistas do SINPRO-Petrópolis e Regiões têm um árduo desafio: vencer a saudade desse grande mestre. (É… Companheiros, a vida tem que continuar. Agora temos que lutar por nós e pela memória dele).

    Os últimos dias da semana que passou foram sombrios. Mas o Sol da esperança não precisa de filtro. Depois que tive a certeza que a gota de orvalho sobre a pétala de flor tem a beleza da ternura, mas também reflete a fragilidade da vida, parei de reter a lágrimas. A realidade é pedra que afia e desafia o viver. Os amigos que tenho são o meu tesouro. A perda de um me causa sérios danos. Viver é um processo de edificação. É difícil construir esse edifício que precisa do amor como argamassa.

    O Sol, por várias vezes, entrou assim pela janela da minha trincheira domiciliar e me encontrou procurando palavras para salvar-me. A Literatura é meu porto seguro. A Marta é que, às vezes, desliga o interruptor da luz artificial, quando já tem luz natural na biblioteca. A noite sobre os livros é amanhecível.

    Por volta das 10h do referido sábado, colocamos os pés na estrada, fomos conhecer uma nova livraria. Encontrei lá vários livros que tenho em casa, mas reeditados com outras apresentações. Sorri internamente: “estou me sentindo em casa”. A Marta se divertia com as novas diagramações de obras em domínio público. Tomamos um cafezinho e caímos na estrada novamente. Fomos ao horto comprar as nossas frutas… 

    Distrair para se “destrair”. A dor não nos abandona. No entanto, ela não pode nos vencer, ou melhor, não podemos nos deixar vencer, não podemos “desanimar”, no sentido literal do vocábulo: a palavra “ânimo” tem origem latina, “animus”, significa “alma”, a parte não material do ser, o “sopro da vida”. Ser animado é ter vida. O “desanimar” é perder a vitalidade. Por isso não podemos perder o gosto pelo viver. Todo animal precisa ser “animado” para lutar pela sobrevivência.

    Há motivações internas e externas. Porém a que nos revigora e nos faz vencer a solidão é a força que nasce dentro de nós, a automotivação.

    Depois dessa “grande” aventura, voltamos para casa. O Sol ainda entrava pelas janelas, mas com outras cores, prenunciando o final de tarde. Precisávamos encarar a noite de forma lúdica: combinamos para ir ao cinema com direito a guaraná e pipoca. Mas a pizza seria caseira. Por isso, outra vez, colocamos o pé na estrada para comprar os ingredientes. Fomos a um hortifrúti que tem uma padaria:

    – Você não precisa descer. Vou lá pegar um manjericão e a muçarela de búfala e uns pãezinhos pro café de amanhã.

    No estacionamento, vi um amigo parado na calçada na frente do hortifrúti. Olhava para o céu levíssimo, quase flutuando. Alto, elegante, um atleta, nos seus 80 anos bem vividos. Desci do carro, fui cumprimentá-lo. Quando me viu, deu um leve sorriso. Minha consciência pesou: “quebrei a concentração dele”. Mas, logo, me justifiquei: trago notícias boas de Minas. Vou dizer a ele que visitei, no mês passado, um amigo comum que está bem de saúde, apenas a memória, por causa do Alzheimer, está em outra esfera. Mas me encontrou no passado dele. Conversamos, recitamos versos de “O Navio Negreiro” de Castro Alves. Falei do amor com que a esposa se dedica a ele. Após o meu relato, o elegante amigo disse:

    – Meu jovem, o amor imuniza, aumenta a nossa resistência. Sem amor a nossa imunidade cai, ficamos expostos a doenças. Conheço muita gente que partiu por não resistir a ausência da pessoa amada…

    Após ouvir a bela explanação, bati palmas. A Marta chegou na hora do aplauso, não entendeu bem a minha manifestação. Perguntei pela esposa dele. Achei que ela também estava no hortifrúti:

    – Ficou em casa. Vim aqui só comer um doce. Ela não pode comer doce…

    Vi um menino se deliciando com um doce. Entendi o olhar dele no infinito. Mas sobre o amor, legislou com conhecimento de causa. A esposa dele completará 70 anos na próxima semana. E ambos se amam profundamente.

    – O amor é o termômetro do prazer de viver. Amar é uma ação em autodefesa.

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