• Uma Veneza desmascarada e sem carnaval

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  • 16/02/2021 07:43
    Por Ilana Cardial, especial para o Estadão / Estadão

    Pela primeira vez em 30 anos, as ruas de Veneza ficaram em silêncio durante o tradicional carnaval. Da última vez em que isso ocorreu, em 1991, os vestidos de época e as máscaras de papel machê sumiram das calçadas da cidade italiana em razão da Guerra do Golfo. Desta vez, foi a pandemia de coronavírus que esvaziou a cidade.

    Com pontos turísticos desertos, as autoridades tentam manter o espírito da tradição com uma programação online. Com o tema Tradicional, Emocional e Digital, o carnaval de Veneza terá uma programação que termina amanhã com transmissões ao vivo e vídeos sobre a história da festa. As gravações ocorrem no Palácio Ca’ Vendramin Calergi. “A diferença frustrante deste ano é que não podemos nos encontrar, mas pensamos que, dada a situação, poderíamos ao menos mostrar o carnaval”, diz o mestre de cerimônias Maurizio Agosti, que trabalha há 27 anos na produção do evento.

    O carnaval online começou a ser planejado em novembro de 2020. Pelo menos 20 pessoas, entre produtores, dançarinos e apresentadores, que em anos anteriores fizeram o espetáculo na Praça de São Marcos – principal ponto turístico de Veneza -, agora estão no palácio.

    “Todo mundo que está participando deste carnaval tem uma paixão. Dizemos que não podemos parar. Precisamos mostrar algo, então decidimos fazer online”, afirma Agosti, que acredita ser essa uma forma de salvar um pouco da história. “Estou feliz, faço com todo o meu coração e aproveito de algum modo, mas claro que quero que façamos o verdadeiro carnaval no ano que vem.”

    Normalmente, cerca de 3 milhões de turistas passeiam pelas ruas estreitas de Veneza durante o carnaval. Ana Laura Mattar Carciofi, de 38 anos, se assustou na primeira vez que foi à festa, em 2018. “É muito cheio, você não consegue nem andar”, lembra a paulista, moradora de Pádua desde 2017. A região do Vêneto, onde ficam as cidades de Veneza e Pádua, encontra-se na zona amarela da pandemia – o que permite que os moradores circulem apenas dentro da própria região.

    No primeiro sábado de carnaval deste ano, Ana Laura foi a Veneza. Como ocorre desde o início da pandemia, a Praça de São Marcos estava vazia. “Fica muito diferente, dá uma tristeza.” Ela até tentou assistir à programação online, mas achou “muito chatinha”. “Não deu para matar as saudades. Eu gosto de estar ali, no meio das pessoas, na agitação. A fritella (um doce frito e recheado) em uma mão e o Aperol Spritz (drink italiano) na outra”, disse.

    Cidade vazia

    Para a brasileira, este é o “carnaval dos venezianos”, ainda que sejam poucos. “A população está ocupando os espaços que, muitas vezes, não consegue com os turistas. Estão aproveitando mais a cidade e não deixaram o carnaval morrer.” Ainda assim, como fotógrafa, ela também foi afetada pela falta dos visitantes. “Faz tempo que eu não fotografo. O comércio, em geral, está sofrendo muito.”

    O carnaval de Veneza tem raízes seculares e é um grande espetáculo a céu aberto. Moradores e turistas se vestem e desfilam com fantasias sofisticadas, que relembram o século 18. O dia anterior à quaresma é oficialmente feriado desde 1269. Na época, os foliões cobriam os rostos para se divertir sem serem reconhecidos. É daí que vem a tradição das máscaras artesanais, principal característica do carnaval veneziano.

    Na Tragicomica, uma das lojas mais tradicionais e antigas do ramo, as máscaras não veem clientes há quase um ano. São milhares espalhadas pelas mesas, paredes, teto e até no chão. Aos 61 anos, Gualtiero Dall’Osto, dono do local, é um dos “mascareri”, artesãos que produzem as máscaras, que sofrem com a falta do turismo. “Acredito que, como categoria, fomos os mais prejudicados vivendo no centro histórico. Perdemos 100% das vendas ou muito perto disso.”

    Problemas

    Veneza passou por uma sucessão de problemas nos últimos meses. A cidade foi alagada, em novembro de 2019. Quando se recuperava, veio a pandemia e interrompeu o carnaval de 2020. Em dezembro, as águas subiram novamente.

    Para Dall’Osto, a ideia de uma festa digital deturpa a essência da comemoração. “O carnaval é uma festa que se vive junto, em turmas, dançando, comendo, transgredindo, experimentando. É também sobre vestir as máscaras para ter uma nova identidade”, disse o artesão, que produz as peças há mais de 40 anos, uma a uma, todas feitas à mão. “Tudo isso, com os limites impostos pelos regulamentos sanitários, não é possível.”

    Nesta edição, o que agradou a Dall’Osto foi o pouco que ele viu pelas ruas, não pelas telas, nas apresentações online. Segundo ele, os pequenos espetáculos de duas ou três pessoas chamaram sua atenção. Ele também criou seu própria encenação. Partindo de um personagem histórico da Commedia dell’Arte, Dall’Osto transformou o Coviello em “Covid-viello”, que é perseguido pelo Médico da Peste, personagem tradicional do carnaval veneziano, inspirado nos trajes usados na peste negra.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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