• Uma releitura do movimento negro

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  • 13/06/2020 00:01

    Já faz alguns anos, mas eu me lembro bem de um vídeo do ex-presidente Barack Obama, nunca comentado pela grande mídia, em que ele afirmava que não era branco nem preto e sim mulato. Ao invés de tirar proveito político junto ao eleitorado negro, ele optou por ser honesto. De fato, sua convivência com o pai nigeriano foi mínima. Ele foi criado por sua mãe, Ann Dunham, e seus avós brancos. Seria estranho que ele ignorasse sua metade branca. Bem antes do Obama, é notável termos tido um Primeiro-Ministro mulato entre 1885 e 1888.

    Retornando aos tempos atuais, dias atrás, eu assisti uma rápida live do Caetano Veloso que, de certa forma, me deixou surpreso. Contrariamente à onda atual de só valorizar a figura histórica do Zumbi, ele ressaltou a importância da Princesa Isabel na luta contra a escravidão. Ela assinou não só a Lei Áurea como a do Ventre Livre, em 1871. Esta lei criou um fundo com recursos para comprar alforrias. O impacto foi muito significativo ao reduzir o número de escravos de 1,5 milhão para cerca de 700 mil em 1887, com estes últimos sendo libertados em 1888.  Foi a única vez em nossa história que se combateu a desigualdade com firmeza ao longo de décadas até a vitória final.

    Tenho acompanhado a luta pela igualdade e o crescimento do movimento negro nessa saudável direção. Existem razões de ordem moral e econômicas para atingir esse novo patamar. Essa é também uma luta pela redistribuição mais igualitária da renda. Um bom exemplo histórico disso foram os aumentos salariais concedidos por Henry Ford a seus funcionários para que pudessem também comprar carros. Nos EUA, os 10% mais ricos controlam cerca de 25% da renda nacional ao passo que no Brasil o percentual bate em 50%. Isso significa um mercado consumidor bem menor do que poderia ser.

    As bandeiras do movimento negro, em linhas gerais, caminham na direção correta com eventuais excessos ao subestimar, ou até esquecer, vultos históricos como a Princesa Isabel, devidamente apontado pelo Caetano. Mas é preciso superar certa tendência ao vitimismo, detectada também por amigos e conhecidos meus de todas as cores. Essa visão não contribui para fortalecê-lo nos planos da autoestima individual e coletiva dos descendentes de africanos.

    Pesquisas e estudos modernos, apoiados em bases quantitativas, têm ressaltado a figura do negro como agente histórico. Ou seja, individualmente ou em grupo, a resistência e a luta contra a escravidão sempre esteve presente desde os tempos coloniais. O emblemático quilombo dos Palmares data de 1580, com auge em meados do século XVII (1650), e se manteve ativo por cerca de um século antes de ser destruído. Mas isso não significou o fim dos quilombos menores que continuaram a existir até às vésperas da assinatura da Lei Áurea. Ficou famoso o do Leblon, que produzia camélias usadas na lapela pelos abolicionistas. A Princesa Isabel as recebia diariamente, sabedores que eram de sua atitude de acolher negros fugidos nos porões do Palácio Imperial. E ainda um jornalzinho abolicionista publicado por seus filhos e herdeiros.

    Infelizmente, foge ao conhecimento do grande público a visão do jornalista e escritor negro Tom Farias que, em entrevista, afirmou que o século de ouro do negro no Brasil foi o XIX. (Ele é autor de uma biografia da Carolina de Jesus, autora do best-seller Quarto de Despejo.) De fato, por volta de 1850, cerca de metade da grande população negra do Rio de Janeiro já era livre. Este fato evidencia a garra dos descendentes de africanos em buscar a liberdade. Mais que isso: o número de negros que se distinguiram como jornalistas, advogados, médicos e engenheiros nos tempos do Império é extremamente revelador dos avanços que vinham sendo obtidos. A Escola de Medicina da Bahia, por exemplo, tinha 18 lentes (professores) que eram negros ou mulatos.

    Não é só isso. Existem alguns mitos demolidos pelas pesquisas da Profa. Maria Lúcia Rodrigues Müller, doutora em Educação pela UFRJ e coordenado-ra do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação na Universidade Federal de Mato Grosso. Um deles é que após 120 anos de escravidão, em suas próprias palavras, “os negros não teriam tido tempo de recuperar o atraso”. Outro é que “os negros só muito recentemente chegaram à escola, razão pela qual a maioria das pessoas de cor se encontraria nos patamares inferiores da vida nacional”.

    Em artigo publicado em O Globo (“Cadê a elite negra na educação?”, 5.12.2008), ela se reporta às fotografias mostradas no livro A cor da escola – imagens da Primeira República. O que chama a atenção nessas fotos do início do século XX é a presença de professores negros, inclusive como diretores e vice-diretores, no Rio de Janeiro, Mato Grosso, Minas Gerais e Distrito Federal. Na época, eles chegaram a compor cerca de 20% dos quadros do magistério nesses estados. A partir do final da década de 1920, essas fotografias de formatura vão embranquecendo, quase desaparecendo a presença professores e de alunos negros e mulatos. Foi o triste resultado, nessa época, do discurso da eugenia em que melhorar a raça era sinônimo de embranquecer o país.

    No século XX e até hoje, a desigualdade cresceu atingindo em cheio a população negra e parda. A escola pública de qualidade jamais foi um objetivo permanente da república. No Rio de Janeiro, nas últimas décadas do Império, um professor de ensino fundamental e médio chegou a ganhar o triplo, em termos reais, do que ganha hoje um professor do ensino primário e secundário.

    Deu para entender, agora, o porquê da ladeira abaixo em que nos metemos em matéria de desigualdade? E quem realmente se preocupou com a população de origem africana no Brasil? André Rebouças, o famoso engenheiro negro, anteviu um futuro sombrio para a raça negra com a chegada da república. Infelizmente, ele acertou. Mas o movimento negro precisa seguir em frente com uma visão mais clara de quem está, e esteve, a seu lado.   

     

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