• Uma janela para a roça

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  • 17/05/2020 00:01

    Neste período de quarentena, para desintoxicar das notícias sobre a pandemia provocada pela Covid-19, tenho viajado pelo antigamente, guiando-me pelo retrovisor, pois o que enxergo das ações humanas, pelo para-brisa, leva-me a crer que pouco evoluímos, tendo em vista a perda do senso de humanidade pela ação corrosiva do vil metal. A fraude na compra de equipamentos no combate ao novo coronavírus é um crime hediondo, mostra o lado perverso de quem não tem a mínima consciência do bem comum.

     

    Os abutres sociais são portadores de uma insensibilidade a ponto de vender a alma a qualquer preço. Ando por esta contramão, porque acredito que “os mansos herdarão a terra”. E sigo o que está escrito no Salmo 37: “não te irrites por causa dos ímpios, não invejes os malfeitores, pois murcharão tão depressa como o capim e secarão como a erva verde.” Mas reconheço que é duro controlar a indignação diante da covardia e da perversidade.

    Tenho ligado para os amigos que, como eu, pertencem ao grupo de risco, com o propósito de remexer os baús das lembranças, puxando pelo fio da ludicidade que está na memória da infância. Com isso, tenho aliviado as tensões das estatísticas que contabilizam as mortes causadas pela covid-19.

    Um poeta amigo, que neste período de isolamento está se dedicando ao estudo da linguagem, tem empoemado palavras que fogem das metáforas desgastadas. Tem tirado tutano do osso poético para infinitar a Poesia, poetando pelos neologismos de forma concisa, atravessando silêncio para encontrar a medula do poema no âmago da vivência. Para esse mergulho não há escafandro. Dentro do eu, não há espelho, por isso, se não houver luz dentro de si, não há como ver as cores do mundo. O comover-se depende do como se ver a realidade. Olhar para uma pessoa e ver apenas um cpf de consumo revela a cegueira provocada pela obsessão do materialismo do capital nocivo. Não é o nu que se veste. É a roupa que cobre o corpo para mostrar-se. A vaidade está na raiz da ostentação que alimenta o consumismo.

    Na quarta-feira passada (13/05), liguei para um amigo e nos divertimos pelos caminhos da roça. Ele me contou um caso de um barbeiro de uma cidade interiorana que deduzia a procedência dos clientes pelo tamanho do cabelo a ser cortado. Os lavradores que chegavam com os cabelos mais longos eram de povoados mais distantes da praça da igreja matriz na qual estava localizada a barbearia. Quando não sabia o nome daqueles que o procuravam, ele se referia ao povoado que deduzia ser a procedência do novo cliente. Só que um dia, essa dedução falhou. Antes de abrir a barbearia, avistou um senhor que olhava os cascos do cavalo apeado debaixo de uma árvore da praça. Uma cena pouco comum no início da manhã no meio da semana.

    Quando ele abriu a barbearia para início do trabalho, o moço se aproximou:

             – Vim aqui resolver uns problemas, fazer umas compras. Mas antes, quero cortar o cabelo…

    O barbeiro, depois do bom dia, logo perguntou se o senhor era de um determinado povoado. Mas errou a dedução. O novo cliente viera de uma região mais distante. Por essa razão, deduziu que ele havia saído de casa no meio da madrugada para chegar àquela cidade nas primeiras horas da manhã.

              Já com o cliente sentado, o barbeiro, querendo puxar uma prosa, elogiou o cavalo:

             – O seu animal é bem vistoso!

             – Devo a ele a vida…

             Essa frase aguçou a curiosidade do barbeiro:

             – Ele lhe salvou de algum aperto?

             – Há duas semanas atrás, naquele temporal que fez um estrago danado na plantação. Se não fosse ele, eu tava morto.

             – Uai! Como assim?

             – Quando no meio da tarde daquele dia, o céu enturvou de nuvem escura, o cavalo danou-se a pular no estábulo desassossegado, relinchava desesperado. Vendo aquilo, fui lá, peguei ele no cabresto. Tentei segurar, mas tava inquieto. Montei e ele saiu destampado pra cima do morro. Só lá em cima que se acalmou. E a chuva caiu. Deu uma tromba d’água na cabeceira do rio que alagou tudo. Só agora que começamos a tomar prumo. Por isso vim aqui comprar algumas coisas que tão na falta.

    Moral da história: a gratidão reflete a humildade e o respeito que temos até pelos animais.

     

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