• Um poetário

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  • 08/05/2017 08:00

    Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes, ou simplesmente Belchior. O 13º entre 23 irmãos. Definia-se como “um rapaz Latino-Americano/ sem dinheiro no banco, sem parentes importantes/ e vindo do interior”, fez a sua travessia neste mundo, compondo poemas e melodias sobre a realidade que passava pelas suas retinas. Foi mais um a desafinar o coro dos contentes. Dizia: “a minha alucinação é suportar o dia-a-dia/ e meu delírio é a experiência com coisas reais”.  Achava-se “um cara difícil de domesticar.” “O que é que pode fazer o homem comum/ neste presente instante senão sangrar?” E sangrou. A veia aorta não suportou a pressão. Não morreu jovem. Partiu aos70 anos, expondo as incoerências movidas pelo vil metal que levam o homem a ter atitudes selvagens.

    Esse Antônio não foi menos importante do que outros que também nasceram em solo brasileiro, como o Jobim, o Cândido, o Houaiss, o Callado, o Maria. Ele era da terra do Conselheiro, que não viu o “sertão virar mar”. Mas esse sertão está em toda parte, até dentro de nós. Há muitas secas nos campos e nas capitais. 

    Há uma multidão cheia de vazios que transforma shopping em templo. Reverencia as vitrines. O consumismo desenfreado foi criticado por esse cantor poeta, por esse poeta cantor que soube tirar da dor e das contradições da vida moderna “mote e glosa”. 

    As letras de suas músicas são poemas. Seus poemas são canções.  Porém não foram feitos somente para serem cantados, mas também refletidos, porque retrata a “divina comédia humana onde nada é eterno.” Vários deles são concretos, com estrutura textual portadora de significados. Foram expostos ao público com o propósito de desestabilizar a velha “zona de conforto” que a alienação oferece. Abordou a efemeridade da vida. Falava da fragilidade dos laços afetivos, “o amor líquido”, descrito por Zygmunt Bauman.

     Apresentava-se como simples “cantador das coisas do porão.” Mas denunciava as “botas de sangue nas roupas de Lorca”. Ele foi bem claro em “Baihuno”: “Trogloditas, traficantes, neonazistas, farsante: barbárie,/ devastação. O rinoceronte é mais decente do que essa gente demente/ do Ocidente tão cristão.”

    Apesar do sorriso largo, não ria à toa, porque sabia que a vida é diferente da canção, “ao vivo é muito pior”. Entre o céu e a terra, há muito mais do que sexo, droga e rock’n roll. 

    Vejo hoje a pobreza da ostentação. Fazem shows só pensando no cachê. Pulam, dançam, entorpecem o cérebro com álcool e outras drogas, deixando-o no vácuo. Poucos pensam em “amar e mudar as coisas”. 

    A interdiscursividade que há nos poemas/letras desse trovador mostra a sua bagagem intelectual. Discos, livros, filmes faziam parte do seu universo: Dante, Dylan, Beatles, Gonzaga, Jackson, Caetano, Gil, Chico, Ben Jor, Poe, Donne, Pessoa, Cabral, Bilac, Castro Alves, Azevedo, Alencar, Machado, Drummond, Chacrinha são apenas algumas alusões encontradas em suas composições. Mesmo com tantas referências, preferia caminhar sozinho, pois sabia de que lado nasce o sol. Saiu de Sobral e ganhou o mundo, com a consciência de que o sertão é fértil. 

    Às vezes, acho mais fácil entender uma obra de arte do que compreender as regras do jogo que a cerca. Um artista morto é um produto rentável. Essa é uma das faces cruéis do capitalismo: deixa falir para quebrar a bolsa, deixa morrer para vender os restos mortais como relíquias. Fazem filmes da morte e vida severina dos artistas. Relançam suas canções, leiloam seus bens. Quando em vida, nada fizeram para preservar o talento que exploram. O bicho homem é o mesmo, não importa o século.

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