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  • 04/01/2020 09:28

    12 horas. Ao ouvir o sino da Igreja, pegava a caixa de remédios, um copo d’água e sentava no mesmo lugar, ao lado direito da cabeceira da mesa. Separava calmamente os comprimidos que tinha que tomar. Engolia-os de uma só vez. Isso já se tornara um ritual, pois se repetia, há anos, antes das refeições… 

    — Vó por que você toma tanto remédio? 

    — Também não sei. 

    Depois que vim pra cá, me levaram pros médicos que só me mandam tomar remédio. São muitos cachés que tenho que tomar num só dia. Na barriga, cada um procura o seu canto. As minhas forças estão vencidas. Perdi o ar da roça. A sua mãe me trouxe pra cá, depois que o seu avô morreu… Já não durmo mais em rede. Me botaram pra dormir em cama, o vazio cresceu…

     — Quando a gente envelhece, fica assim recebendo ordem dos filhos. Tô aqui não sei pra quê… — Tô desatada da minha terra… 

    — A hora do almoço já passou e ninguém me deu de comer… 

    — Vó, hoje é primeiro de janeiro, o primeiro dia do ano. É sempre assim, quando a família se reúne, o almoço atrasa um pouco. É muita gente…

     — De começo de ano, já tou cheia. A labuta não muda. Entra ano e sai ano, a gente fica sempre nesse correr de vida, buscando prumo. Quando alguém chega na minha idade, as novidades vão diminuindo. Mas vou morrer sem ter visto tudo… 

    — Quando eu era a dona da casa, o almoço não atrasava. Hora de comer é sagrada. E temos que agradecer a Deus. Não vejo ninguém mais fazendo isso… 

    — Vó, os tempos mudaram… 

    — Uh! Nã! O tempo é o mesmo, quem muda são as pessoas. O mundo nasceu no tempo, hoje como antigamente. As pessoas é que mudam. Se o seu avô tivesse aqui já tava reclamando. Ele ficava agoniado, quando tinha que esperar pelo de comer… 

    — A senhora gostava dele? 

    — O que a gente sente não pula na língua. Fica guardado no peito; o que neste alumia é que deixa a gente feliz. Quando se fica junto, querendo que o nunca separe, se deixa levar pelo canto dos canários da terra e só se desgarra com a morte. Mesmo na cama, durmo com a peixeira dele do lado, pra não ver homem nenhum perturbando o meu sono. Quem pendura, no sempre, as alianças do compromisso do juntado, precisa honrar o sim dado. O destino não sai da boca do vento, mas da Imaginação de Deus… 

    — O de comer tá demorado! Já tomei os remédios, preciso comer alguma coisa de sal…

     — Vou falar com a minha mãe, pra adiantar o seu almoço… 

    — Ela sabe que não posso ficar muito tempo sem comer. Fico tonta e com o corpo mole… 

    — Eu, na sua idade, não tinha essa preocupação. A gente comia quando a mãe chamava, depois de ouvir o sino da igreja bater… A gente corria já pedindo bênção. Isto, também não vejo mais: filho pedindo bênção aos pais. O respeito não envelhece…

     — O que vocês tão conversando aí?… 

    — Mãe, é que a vó já quer almoçar. Já tomou um monte de remédio, tá querendo comer…

     — Já vamos servir o almoço, espere mais um pouquinho. Já, já vamos colocar a comida na mesa… 

    — Só tô esperando o meu irmão chegar com os filhos… 

    — Ele sabe que tô aqui? — Ele vem pra ver a senhora… 

    — Ah! Faz muito tempo que não vejo ele… Saudade de mãe é amarrada no silêncio da espera… Às vezes, a gente sente que a visita é feita pela obrigação do filho e não pelo carinho que a gente acha que merece… No sossego da solidão, não falta tristeza. No coração, tem muita coisa calada… 

    — Vó, a senhora parece triste? 

    — Não, não é tristeza. É a dose de verdade que o tempo nos faz beber! Um dia, você vai entender isso… Volte pra lá, vá brincar… Colocar pergunta onde não tem resposta é que endoidece.

     

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