• República e racismo estrutural

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  • 27/11/2020 12:00

    A cena cruel de espancamento até a morte do negro João Alberto na saída do Carrefour em Porto Alegre nos encheu de indignação. Protestos em todo o país. A primeira reação de quem assistia o vídeo remetia ao que havia ocorrido nos EUA. Um policial branco pressionou com seu joelho o pescoço do negro George Floyd até matá-lo, surdo a seus apelos de que não conseguia respirar.

    Inúmeros artigos foram escritos, comentaristas de TV se manifestaram e se debateu em diversas oportunidades o fato atroz e inaceitável. E se seguiram explicações que, no Brasil, seria uma sina que vem desde os tempos coloniais, passando pelo Império e se estendendo pelos tempos atuais ditos republicanos.

    Para se perceber a natureza do ocorrido, há que se levar em conta como foi tratada a questão do negro (e pardos) ao longo de nossa história, em especial no pós-1889. Ou seja, se a república representou um avanço ou um retrocesso para o povo de origem africana. Essa discussão passou em brancas nuvens na mídia a despeito de sua importância para entender sua origem e agravamento.

    Temos duas pistas que nos permitem ir além da sabedoria convencional. A primeira nos é dada pelo jornalista negro Tom Farias, autor de uma biografia de Carolina de Jesus, que escreveu o best-seller Quarto de despejo. Ele afirmou em entrevista que é criticado quando diz que o século de ouro do negro no Brasil foi o XIX. Quando nos deparamos com o número de negros que se distinguiram como jornalistas, advogados, médicos e engenheiros no final do Império, a assertiva de Tom Farias nos faz refletir. Naqueles tempos, na Escola de Medicina da Bahia, 18 lentes (professores) eram mulatos e, na do Rio de Janeiro, ocorria fenômeno semelhante, evidenciando a presença de alunos mulatos e negros, que acabavam galgando postos de docentes.

    A segunda pista foi garimpada pela Profa. Maria Lúcia Rodrigues Müller, doutora em Educação pela UFRJ e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação na Universidade Federal de Mato Grosso. Em artigo publicado em O Globo (“Cadê a elite negra na educação?”, 5.12.2008), ela se reporta às fotografias mostradas em seu livro A cor da escola – imagens da Primeira República. O fato notável das fotos de formatura do início do século XX é a presença de professores negros, inclusive como diretores e vice-diretores, no Rio de Janeiro e em Mato Grosso. Na época, eles chegaram a compor cerca de 20% dos quadros do magistério nesses estados. A partir do final da década de 1920, essas fotos vão embranquecendo, quase desaparecendo a presença professores e de alunos negros e mulatos.

    O que teria levado à redução da presença deles, que tanto se distinguiram no final do Império e início da república, inclusive em profissões de nível superior? Junto com a república veio de contrabando a visão eugenista de que o Brasil seria tanto melhor quanto mais branco fosse. Não é preciso muita imaginação para detectar aí a certidão de nascimento do racismo estrutural tão falado hoje. Para piorar, não poucos intelectuais da época embarcaram nessa canoa furada. Quando parte da elite pensante desacredita do seu próprio povo é péssimo sinal. Estudos e pesquisas da USP confirmam o quadro descrito. E assim se passaram quatro gerações, 130 anos! No Império, Dom Pedro II e a Princesa Isabel lutaram, durante décadas, a favor da população de origem africana. 80% dela já era livre em 1888. Foi o único período de nossa história em que houve significativa redução da desigualdade, fato que pode ser comprovado com números e iniciativas legais, que culminaram com a Lei Áurea.

    A entrevista dada ao Globo, em 22.11.2020, pelo teólogo e ativista negro Ronilso Pacheco, revela desinformação. Ele afirma que o racismo brasileiro é mais cruel do que o americano. Lá, seria escancarado, e aqui, disfarçado. Mas não se perguntou como ficou a alma do negro americano. Nada como ler James Baldwin, escritor negro americano, sobre essa terrível mutilação. Nos EUA, não existem cultos africanos (os negros são evangélicos); a culinária se perdeu; os instrumentos de percussão emudeceram. Esse estrangulamento cultural do negro não ocorreu no Brasil. Quem é mais cruel? Pautar a interação entre negros e brancos por padrões americanos é forçar a barra. Se aqui o racismo é estrutural, então lá é visceral.

    Quando a Princesa Isabel, no exílio, se deparava com um brasileiro, a primeira pergunta era sobre a situação dos negros. Já a república deu de ombros. Desde 1889.

    FIM

     

     

    Autor: Gastão Reis Rodrigues Pereira

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