• Redes sociais, mídia tradicional e fake news

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 04/07/2020 12:00

    A democracia nasceu na praça pública grega bem antes da era cristã. Naqueles tempos, Clístenes, aristocrata grego, se deu conta de que Atenas era dominada por cinco famílias ricas tradicionais. Para permitir a efetiva participa-ção popular nas decisões políticas, dividiu a cidade-estado em cerca de 140 distritos eleitorais. A palavra democracia é normalmente definida como governo do povo: cracia, poder e demos, povo. A rigor, demos significa distrito em grego. Ou seja, democracia tem, em sua raiz grega, a ideia de dar poder aos distritos.   Em outras palavras, poder local, origem do princípio da subsidiariedade.

    O objetivo de Clístenes era equilibrar a balança das forças políticas em que predominavam a aristocracia e a monarquia, abrindo espaço para o povo através dos representantes dos distritos. Infelizmente, durou pouco, em torno de 70 anos, porque deixou a porta aberta para o populismo, o fenômeno da ditadura da maioria, que tanto preocupava os pais fundadores dos EUA e também a Dom Pedro I e a José Bonifácio na elaboração da constituição outorgada de 1824.

    Ao longo dos séculos, foram desenvolvidos mecanismos de limitação dos poderes para evitar o surgimento de ditaduras em que um dos atores subjugasse os demais. O poder moderador, no tempo do Império, tinha essa função de reequilibrar o desarranjo entre os poderes quando estes entravam em choque.  Dom Pedro II fazia a distinção entre opinião nacional e a apregoada como pública. Esta última sofria os efeitos das tensões de curto prazo em detrimento por vezes do interesse público – o bem comum – numa visão de longo prazo.

    E o que tem a ver as redes sociais com o que foi dito acima? Muita coisa.

    Atenas nunca foi muito além de 300 mil habitantes. É fácil perceber que as redes sociais de então funcionavam a contento nos espaços da praça pública, em especial após a criação dos distritos, os demos. O líder de cada demo tinha autoridade jurídica e tributária sobre seu distrito. Administrava a justiça e a cobrança de impostos. Estes eram destinados a atender as necessidades locais. Não havia a extorsão de cerca de 80% dos impostos arrecadados por outras esferas de poder, como ocorre hoje nos depauperados municípios brasileiros.

    É surpreendente que o poder local no Brasil colonial retivesse 70% dos impostos arrecadados em sua jurisdição e em torno de 50% ao longo do Império, caindo para 20% em média atualmente. E, assim mesmo, cerca de metade desse percentual depende das famigeradas transferências federais com toda carga de corrupção sistêmica que sua liberação requer. O poder republicano no Brasil involuiu no sentido de calar a voz dos municípios.  Restou-lhes o chamado jus sperniandi.  Acabaram sem ter recursos. Mais da metade da população está hoje sem esgoto tratado e sem escolas públicas de qualidade em tempo integral.

    O crescimento demográfico por sua vez facilitou o desenvolvimento da grande mídia nacional que se tornou a grande dama da comunicação. Nem sempre dama; por vezes, casa de tolerância em que o interesse público poucas vezes tinha vez. Os canais de TV de alcance nacional, através de telejornais, novelas e programas humorísticos passaram a dispor de poderosos instrumentos para fazer a cabeça da população, até mesmo de manipular a opinião pública.

    Entretanto, não estava no script o aparecimento das redes sociais digitais com seu poder disruptivo. Um país que não tem o voto distrital puro, como nos EUA e na Europa, a população encontrou nas redes sociais a válvula de escape tão desejada. Na verdade, ela não encontrava alternativas para extravasar suas múltiplas decepções com o sistema de poder republicano em que a corrupção se tornou sistêmica, a desigualdade quase campeã mundial e políticos que cuidavam de tudo menos de representar dignamente seus eleitores.

    E foi assim que a grande mídia tradicional se sentiu acuada ao perder o monopólio de que dispunha. Da mesma forma, os poderes constituídos sentiram na pele seu desprestígio diante da população, aqui incluídos o próprio congresso nacional e o STF. Bastam dois exemplos dentre muitos: o congresso sequer colocou em votação a destinação de 2 bilhões do fundo eleitoral para o combate ao coronavírus e o STF decidiu a favor da irredutibilidade dos salários dos servidores públicos, mesmo em situações de calamidade pública. Disposição zero de ambos em fazerem quaisquer sacrifícios em prol da população.

    E foi diante desse quadro desalentador, que explodiram as fake news, ou as notícias falsas. O inquérito ora em andamento sobre elas, por decisão monocrática do ministro Alexandre de Moraes, continua na ordem do dia por mais 180 dias. A primeira rodada de investigações frustrou-se. A existência de robôs replicando mensagens políticas não foi tão eficiente assim nas eleições. A tentativa de anular a eleição presidencial de 2018, com base nesse tipo de acusação, será insustentável. A eleição de Bolsonaro, na época, refletiu a indignação nacional diante da corrupção, da desigualdade e dos políticos.

    O inquérito sobre as fake news cheira ao AI-5 da ditadura do Judiciário, como me confidenciou um jurista de renome. Além de representar um potencial ataque à liberdade de expressão, tem sabor semelhante à instalação de um inquérito sobre a mentira. Afinal, já existe legislação que permite apurar calúnia, difamação e mentiras sobre a idoneidade moral de quem quer que seja.   Ou será que o ministro ignora? E desde quando em política e em debates públicos a mentira está ausente? Cabe ao ofendido se defender na justiça. Goste ou não, a população vai continuar vigilante nas redes sociais face aos desmandos dos poderes constituídos e à grande mídia. E vai continuar a bater forte, até mesmo cometendo exageros. Bons modos na defesa do interesse público nem sempre funcionam. Mesmo assim é legítimo, mesmo que não seja tão civilizado quanto gostaríamos. 

                

    Últimas