• O precipício das palavras

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  • 05/08/2020 09:35

           Hoje a comunicação tem fio de pólvora, espalha-se com rapidez. Às vezes, até provoca explosões. A informação anda em trem-bala. Quando se apresenta no formato miojo, não permite ruminâncias. Diante da velocidade e do volume das notícias despejadas pelos veículos de comunicação, o joio e trigo geralmente vêm no mesmo podcast. 

    Tenho visto algumas pessoas correndo atrás da flecha disparada. Atiram palavras precipitadamente que acabam tendo o efeito bumerangue. O imediatismo não ajuda na reflexão. Tenho saudade das cartas, das declarações de amor nos cartões de “Amar é”…”

    Fiz declarações de afeto na carteira escolar para quem eu não conhecia. Sabia que uma garota, no turno da manhã, sentava no mesmo lugar em que eu estudava no turno da tarde. Para ela, sempre deixava uma mensagem de carinho. Não havia nem a curiosidade de conhecê-la, apenas a vontade de acariciá-la com palavras.  Não sei se hoje alguém possa chamar isso de assédio. Mas foi assim, nas primeiras séries do antigo ginásio, que conheci a poesia no estado de essência. Na escola em que fiz o extinto Exame de Admissão, meninos e meninas estudavam em turnos diferentes. Há uma ingenuidade nesse estágio platônico da adolescência em que a felicidade sonhada não tem a mínima noção dos obstáculos da realidade.

    O tempo, que nos carrega pela travessia do viver, vai desvelando, despetalando o bem e o mal me quer.  Mas não há decepção quando não se espera nada de nada. Tudo é lucro, até a dor que aponta os nossos calos. Só não aprendi a ficar calado para não consentir. Mas consigo co-sentir pelo que a vida me ensinou. Compartilhar a dor é uma forma de unir forças, quando se tem o bem-comum como meta. Por isso “é impossível ser feliz sozinho” como afirmara o Poeta. E, por essa vertente, é fácil entender o que o profeta disse: “gentileza gera gentileza” – esse é o efeito bumerangue do bem.

    “Quero ter alguém com quem conversar./ Alguém que depois/ não use o que eu disse contra mim.” Esses versos da canção “Andrea Doria” da Legião Urbana espelham o fio da navalha sobre o qual trafega quem tem o ofício do servir à palavra no talho da arte. Quando dei os primeiros passos nesta estrada, não sabia que o perigo estava no lado de dentro, nas entrelinhas, no não dito, por isso alguns poetas são considerados malditos. 

    As viagens pelo imaginário são movidas pelas deduções. As cabeças com as suas sentenças transformam-se em tribunais. O julgamento da arte é içado pela inquietude que ela provoca, principalmente quando desaloja quem acha que o mundo é um shopping center.   

    Abordei hoje esse assunto em atenção aos amigos que me felicitaram pelo dia do escritor. Fiquei acanhado, porque não me considero um escritor. Fico no amadorismo, porque não sei escrever pelo intelecto. Meus textos passam pelas vísceras, por isso tenho que assumir do jeito que são. Nem sempre escrevo o que penso, mas o que sinto. Às vezes, sinto que penso; outras vezes, penso que sinto, mas sempre tendo como norte Pessoa e Rosa. 

    Botei o pé nesta estrada pelos mimeógrafos de centro acadêmico e de jornais de grupo jovem no início da década de 80. Vender livro de poesia na Cinelândia foi um rito de passagem. Por um período, fui camelô dos meus versos. Pelas crônicas, cheguei a jornais impressos: primeiro em tabloide, depois standard. Por resistência, ainda não me adaptei ao espaço digital. Porém considero esse aprendizado necessário. Contudo, pelos anos vividos, cheguei à seguinte certeza: não tenho vocação para ser espelho dos narcisos. O ouro do silêncio só deve ser quebrado por liberdade.

    Escrevo por mim e a “quem interessar possa”. É preciso ser legível até no escuro. Nenhum escritor tem controle do “interpretável”, por isso o comprometimento com a verdade é imprescindível. A vida é que escreve em nós. Nosso trabalho consiste em catar as palavras com muito cuidado para não ferir, nem ser ferido por elas. Trago a ternura, pois. 

          Quem é clariceado sabe que coser para dentro é melhor do que para fora. A compulsão da leitura impulsiona o escrever. Mas é preciso ter coragem para despir-se em palavras e lavrar a vida com o arado do amor e plantar a semente da paz. Fake news é coisa do ódio. O Verbo que se fez carne sedimentou o Caminho da Verdade. Para segui-Lo é preciso aprender a compartilhar o pão. Isso não é milagre; é fraternidade, humanamente possível.

     

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