• O lobo-guará e a identidade nacional

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  • 05/09/2020 00:01

    O lançamento da nota de 200 reais nos oferece uma oportunidade de entender uma das razões mais importantes da perda de identidade nacional. Ela resulta, em boa medida, da corrupção endêmica que tomou conta do País e que nos deixa a todos envergonhados e revoltados. E – claro! –, com a autoestima nacional no nível do tornozelo. Nada contra o lobo-guará, a ser preservado, dentre outros, como membro em nossa fauna. É bem verdade que foi feita uma pesquisa junto à população para a escolha do animal que deveria ser retratado na nota. Ficou em terceiro lugar, mas acabou emplacando e figurando com destaque na nossa nota de maior valor.

    Esse suposto respeito à opinião popular, na verdade, não passa mesmo de aparência. Quanto à identidade e à nota, cabe registrar o desabafo do depu-tado federal Paulo Eduardo, PSC/PR: “Ao invés de termos em nossas cédulas personagens históricos que construíram a nação, temos animais selvagens. Parece que querem destruir o que fomos para assumir o que nos tornamos.”

    Nessa linha e no nível da piada, o episódio me fez lembrar de uma história real, contada pelo meu saudoso pai, que se passou no antigo estado do Rio de Janeiro, quando da nomeação de certo Secretário de Fazenda. Um jornalista ferino, em meados do século passado, não deixou passar em branco a nomeação questionável. Cito de cabeça, mas preservo a substância do que ele disse. Sob a manchete “Estão Salvas as Finanças do Estado do Rio”, ele disparava ironia apimentada logo no primeiro parágrafo: “O senhor governador, em ato de clarividência política, acabou de nomear secretário de Fazenda o sr. Silvestre Rocha, que reúne em si atributos dos três reinos da natureza: Silvestre, do vegetal; Rocha, do mineral; e do animal, que é ele mesmo.”

    A declaração pertinente do deputado e o fato passado no antigo estado do Rio se somam na mesma direção de um lado animal em seu pior sentido quando visto sob o ângulo do que vem ocorrendo com a nossa autoimagem. E ele não nos induz a nenhum sentimento de orgulho justificável. As expressões de baixo calão que às vezes disparamos, em particular, em relação ao nosso próprio país refletem tristemente esse estado de espírito um tanto mórbido.

    Mas será que foi sempre assim? Com 75 anos, já vivi o suficiente para me lembrar de tempos idos, mas bem vividos. Em minha juventude, as figuras de Dom Pedro I, Dom Pedro II, Princesa Isabel, Duque de Caxias, barão do Rio Branco, e outras respeitáveis personalidades, estavam ali sempre presentes nas notas em que manuseávamos no dia a dia. Sem dúvida, um poderoso instrumento de preservação da memória nacional e de suas grandes figuras históricas. Ninguém ficava com a cara de tacho de pensar que Pedro I era filho de Pedro II por este ser retratado já idoso e seu pai em plena juventude.

    E foi assim que a memória nacional que nos dá orgulho foi para o brejo. Mas será que colocar as fotos de grandes personalidades históricas nas cédulas era apenas mais uma jabuticaba, coisa que só aconteceu no Patropi? Não mesmo! Eu me dei ao trabalho de verificar na internet como são as notas de outros países. Nos países de língua inglesa, os grandes vultos históricos estão todos lá na moeda física nacional. E lá estão há décadas, e ninguém pensa em colocar um urso na nota de cem dólares. Nos países da comunidade britânica de nações, a foto da rainha Elizabeth II é corriqueira sem deixar de contemplar outros vultos nacionais de peso. Na maioria dos países latino-americanos, suas grandes figuras também se fazem presentes, homenageadas e relembradas.

    Estaria eu dando peso exagerado quanto ao poder de ter junto a nós a permanente presença daquele(a)s que souberam dar testemunho de amor à pátria e de respeito ao povo brasileiro? Deixá-lo(a)s esmaecer é como cortar as raízes de um povo. E não se trata de falsos heróis ou heroínas. Se assim o fossem, daria para entender. Não se trata de casos como o de Solano Lopez, no final da guerra do Paraguai, detestado pelas barbaridades cometidas contra sua própria população, e que foi repaginado como grande herói nacional.

     

    Em função de tudo isso, resolvi examinar mais detidamente as notas brasileiras de dois, cinco, dez, vinte, cinquenta e cem reais com olho crítico. Em todas elas, está presente uma cara com uma coroa de louros imerecidos que representaria a própria república. É visível em seu semblante a tristeza que sobressai, encoberta com a máscara de suposta seriedade com que trataria a coisa pública. Ela sabe que a república no Brasil se tornou a própria negação da res publica na medida em que o povo está a serviço de uma burocracia (e suas mordomias) ao invés de ser servido por ela.

    O dramático no caso brasileiro é a dificuldade de reverter esse quadro. Faz-se da lei, marotamente interpretada, um instrumento de manutenção de mordomias pagas pelo povo. Como entender os dois bilhões de reais destinados aos fundos partidário e eleitoral, que jamais seriam autorizados se o povo fosse consultado? Sequer foi colocada em votação a proposta do Partido NOVO de destiná-los como verba adicional ao combate da pandemia. Ou mesmo utilizá-los para ajudar a financiar o auxílio de 600, agora 300, reais para aliviar as agruras da parcela mais desprotegida da população. Dinheiro que iria diretamente para o bolso do povo.

    Desde que o Plano Real foi implantado, é a primeira vez em que a república resolveu mostrar sua verdadeira cara: a do lobo-guará, um animal selvagem. A população que participou da escolha não o colocou em primeiro lugar em sua preferência. A vencedora foi a tartaruga marinha. De toda forma, parece que a malícia popular mandou aos donos da coisa pública uma mensagem. A tartaruga seria uma boa imagem para a lentidão com que a república atende (ou nunca atende!) aos legítimos anseios populares. Ou será que os manda-chuvas da república cometeram um ato falho se desnudando, que Freud explicaria? Sem as raízes, a identidade nacional fenece.

     

     

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