Zanin perde popularidade na esquerda e dá combustível a campanha por mulher negra no STF
Quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) confirmou a indicação de Cristiano Zanin ao Supremo Tribunal Federal (STF), o então advogado desligou celular. Enquanto o aparelho era bombardeado por mensagens de colegas e jornalistas, o futuro ministro comemorava tranquilo com um círculo íntimo a virada iminente na carreira.
Um mês após a posse no STF, o cenário é outro. O celular fora de serviço não é mais suficiente para afastar a pressão externa. E Cristiano Zanin vem sofrendo uma pressão pesada de setores da esquerda, inclusive do próprio Partido dos Trabalhadores (PT), por votos considerados conservadores. Lideranças do partido chegaram a divulgar uma resolução com recados velados ao ministro.
O voto da última quinta-feira, 30, contra o marco temporal para a demarcação de terras indígenas, ajudou a desarmar os ânimos. Em um aceno à base ideológica de Lula, Zanin recebeu a ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, e se deixou fotografar ao lado dela antes da retomada do julgamento.
Decisões e votos anteriores sobre pautas de costumes e direitos humanos causaram desconforto junto aos setores progressistas. O ministro foi o único a votar, por exemplo, contra a equiparação dos casos de homofobia e transfobia ao crime de injúria racial. Ele usou um argumento de ordem processual – um suposto alargamento indevido do pedido inicial – e não chegou a entrar no mérito da controvérsia. Pelo voto, foi acusado de usar artifícios formais como pretexto para não garantir direitos.
Zanin também foi contra a descriminalização do porte de maconha para consumo pessoal. “Se o Estado tem o dever de zelar pela saúde de todos, tal como previsto na Constituição, a descriminalização, ainda que parcial das drogas, poderá contribuir ainda mais para o agravamento desse problema de saúde”, argumentou no plenário.
A lista, no entanto, não para por aí. O ministro votou contra a abertura de uma ação sobre denúncias de violência policial contra povos indígenas guarani e kaiowá em Mato Grosso do Sul. O processo é movido pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, que declarou apoio a Lula na eleição.
Zanin ainda negou usar o chamado princípio da insignificância para absolver dois homens condenados pelo furto de um macaco de carro, dois galões de combustível e uma garrafa com óleo diesel, avaliados em R$ 100. O princípio da insignificância é consolidado na jurisprudência do STF. A essência é que há casos tão irrelevantes, financeira e socialmente, que não vale a pena movimentar o aparelho policial e judicial do Estado em busca de uma punição. A tese vem sendo aplicada a partir de uma dupla perspectiva: criminal e social.
Ao final de seu primeiro mês no STF, Cristiano Zanin acumula no gabinete um acervo de mais de 800 processos. A maioria das ações é herança do antecessor, Ricardo Lewandowski, aposentado compulsoriamente em abril. Predominam casos de Direito Administrativo e Penal.
Quando sua indicação era apenas uma especulação, poucas vozes da esquerda se insurgiram contra a escolha. Àquela altura, a posição do então advogado sobre temas relevantes no debate público e caros aos setores progressistas era desconhecida. O criminalista era o advogado que tirou Lula da cadeia na Operação Lava Jato e antagonizou com o então juiz Sergio Moro – e, para muitos, mereceu a cadeira no Supremo, já que a escolha é uma prerrogativa do presidente.
Para Jeferson Mariano Silva, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e pesquisador do grupo Judiciário e Democracia (Jude), a indicação está associada justamente com a atuação do criminalista na Lava Jato. É de autoria de Zanin o recurso ao STF que provocou uma reviravolta na operação, com a declaração de parcialidade de Moro e a reabilitação política de Lula. O professor avalia que o “combate ao populismo penal” foi o eixo em torno do qual a nomeação do advogado foi construída.
“Zanin não chegou ao Supremo por ser um homem de esquerda nem mesmo por ser o advogado do presidente. Ele chegou lá por ter sido o jurista que mais se destacou na demonstração das fragilidades da Lava Jato”, defende Mariano (leia abaixo a entrevista completa). “Foi decisiva a reputação que ele construiu perante os senadores. Boa parte da atual insatisfação de setores de esquerda com os votos de Zanin advém da inadequada desconsideração desse segundo fator.”
A atuação de Zanin no cargo deu combustível ao movimento em defesa da indicação de uma mulher negra ao Supremo Tribunal Federal, o que seria inédito na história da Corte. O STF teve apenas três ministras, todas brancas – Ellen Gracie, Cármen Lúcia e Rosa Weber.
Lula terá uma nova indicação para fazer com a saída de Rosa Weber, atual presidente do STF, que completa 75 anos neste mês de setembro. A ministra tem um perfil sensível a pautas de direitos humanos. Um manifesto lançado em conjunto por associações do movimento negro, de mulheres e de juristas cobra representatividade e ataca diretamente Zanin.
“Não podemos correr o risco de ver outro Zanin ocupando a Corte, com posicionamentos que vão na contramão das necessidades e dos direitos da maioria da população. O Brasil não aceita mais um ministro conservador”, diz um trecho do manifesto, que já tem mais de dez mil assinaturas.
Apesar da pressão, Lula tem evitado se comprometer com a indicação. Aliados do presidente avaliam que a fidelidade é o primeiro critério para a escolha. Reconhecem, no entanto, que se não indicar uma mulher precisará enfrentar o ônus de ter reduzido a já desequilibrada representação de gênero no tribunal.
Leia a entrevista completa com o professor Jeferson Mariano:
É comum que a base do presidente responsável pela indicação do ministro pressione o magistrado nos primeiros meses após a posse? Tem algo novo aí ou é um movimento esperado?
Jeferson Mariano Silva: Quando o presidente indica para o Supremo um nome profundamente identificado com seu círculo pessoal, é de se esperar que haja uma especial expectativa de que os votos do ministro também se identifiquem com as preferências do presidente. Isso está acontecendo com Cristiano Zanin, mas também foi o caso de André Mendonça e de Nunes Marques.
A novidade é que já não são casos isolados. As indicações partidarizadas do governo Bolsonaro geraram um incentivo forte para que seu sucessor tente neutralizá-las investindo exatamente no mesmo estratagema. No longo prazo, esses incentivos podem gerar uma tendência e mesmo um novo padrão de indicações para o Supremo. A indicação do presidente Lula para a vaga que será deixada pela aposentadoria da ministra Rosa Weber será decisiva para o eventual estabelecimento desse novo padrão.
Quando indicou o Zanin, Lula não escondeu que queria lealdade. Até o momento, os votos do ministro que desagradaram a base ideológica do PT têm relação com direitos humanos e pautas de costume. Isso diz alguma coisa? Para ser mais clara: o próprio perfil do ministro (e agora seus votos) podem indicar que a lealdade que o Lula buscava não era em pautas progressistas, mas na esfera penal pós-Lava Jato?
Jeferson Mariano Silva: A confiança pessoal do presidente foi certamente um dos fatores que levou Zanin ao Supremo. Mas não foi o único. Além dele, foi decisiva a reputação que Zanin construiu perante os senadores. Boa parte da atual insatisfação de setores de esquerda com os votos de Zanin advém da inadequada desconsideração desse segundo fator.
Vale lembrar que, durante praticamente toda a década de 2010, a imagem pública do Supremo esteve profundamente atrelada à agenda de “combate à corrupção”. Do ponto de vista da elite política, no entanto, essa agenda seria mais bem descrita como um inconsequente populismo penal que devastou o sistema partidário brasileiro. Frente a esse histórico recente, o nome de Zanin representava, além de uma íntima ligação com o presidente Lula, uma arma contra o populismo penal. Zanin não chegou ao Supremo por ser um homem de esquerda nem mesmo por ser o advogado do presidente. Ele chegou lá por ter sido o jurista que mais se destacou na demonstração das fragilidades da Lava Jato.
Os partidos de esquerda não têm força numérica no Senado suficiente para sustentar uma indicação para o Supremo com a qual eles se identifiquem ideologicamente.
Tanto para a vaga que veio a ser ocupada por Zanin quanto para a que será deixada por Rosa Weber foram e serão necessárias concessões aos demais partidos que compõem a base governista. No caso de Zanin, o combate ao populismo penal foi a temática sobre a qual se produziu o acordo que pavimentou sua nomeação. Para a próxima vaga, o presidente Lula terá que encontrar outro ponto de acordo em sua base.
A identificação ideológica é sempre o terreno mais sólido para construir indicações para o Supremo. Em um sistema multipartidário hiperfragmentado como o nosso, porém, ele quase nunca está disponível.
As pesquisas do campo encontraram alguma correlação entre posicionamentos dos ministros e quem indica? Ou parece verdadeiro que a cadeira confere certa autonomia em relação ao governo/grupo político responsável pela indicação?
Jeferson Mariano Silva: O estudo político dos tribunais no Brasil é recente e, da mesma forma, é relativamente recente o comportamento judicial praticado em um contexto democrático e de verdadeira independência judicial. Somados, esses fatores tornam nossas pesquisas um tanto inconclusivas ainda. O que sabemos são fundamentalmente duas coisas: Primeiro, ministros indicados por um mesmo presidente têm menor probabilidade de divergir entre si do que ministros indicados por presidentes diferentes. Segundo e apesar disso, não se encontrou nenhum critério objetivo a partir do qual seja possível afirmar uma tendência geral de que os ministros votem em conformidade com as preferências dos presidentes que os indicaram.
O que é central para entender essas duas conclusões um tanto contraditórias é que, além de ser revestida com uma série de proteções formais voltadas a garantir a independência dos ministros, as cadeiras do Supremo são ocupadas pela indicação do presidente, com a aprovação dos senadores. Ao contrário do que muitas vezes se imagina, este último elemento – a aprovação dos senadores – não é meramente figurativa. É ela que determina o quão alinhada com as preferências do presidente serão as indicações (e presumivelmente os votos) dos ministros do Supremo.