• Vulnerabilidade da população de rua: preconceito que rouba a dignidade dos desabrigados

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  • 26/08/2019 15:00

    Neste ano, completam dez anos da criação da Política Nacional para a População em Situação de Rua (PNPR), feita por meio do Decreto presidencial nº 7.053 de 23 de dezembro de 2009. O documento propõe uma política de ações intersetoriais que envolve diferentes secretarias como a de saúde, trabalho, educação, moradia, assistência social e outras, que garantam e legitimem os direitos do cidadão em situação de rua. Assim como a maior parte dos municípios no país, se passaram dez anos e Petrópolis também não aderiu a PNPR junto ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). O município oferece hoje, apenas o serviço de assistência social e saúde baseado nas diretrizes de políticas próprias de cada pasta. 

    O enfrentamento de forma isolada em apenas uma das dimensões do problema, tende a funcionar muitas vezes como um paliativo. O vereador Leandro Azevedo, presidente da Comissão de Esporte, Lazer e Defesa dos Direitos Humanos na Câmara Municipal, em entrevista, nos falou da preocupação com a garantia de acesso a todos os direitos para a população em situação de rua. Em agosto do ano passado, o vereador fez um levantamento sobre o trabalho da assistência e cobrou da Prefeitura explicações sobre o serviço que é oferecido para a população de rua no município. 

    No Centro Pop, dos catorze funcionários, na época, onze foram contratados pelo regime de RPA. No relatório feito pela Prefeitura, a que a reportagem teve acesso, é datado de setembro do ano passado. Segundo o vereador, além do quadro de profissionais ser insuficiente, a quantidade de contratação por RPA gerou uma preocupação. Neste ano, a Prefeitura informou à reportagem que o Centro Pop conta com dezoito funcionários, quatro a mais do que no ano passado. 

    Outra preocupação levantada no relatório é em relação às verbas do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), repasse feito pelo Ministério da Cidadania (MDS). Segundo o vereador, em 2018, foi estimado que as verbas estavam bloqueadas há mais de um ano. No relatório, a Prefeitura afirma que em 2016, devido a uma migração de contas por determinação do Ministério, houve atrasos nos repasses, e na transição de 2016 para 2017 teve uma perda de mais de R$ 250 mil, nos recursos destinados ao Centro Pop e à abordagem social. No exercício de 2017, o saldo de repasses feitos pelo MDS referente ao bloco da Proteção Social Especial – Piso de Média Complexidade, chegou a ser pouco mais de R$ 600 mil. No fim do exercício de 2017, após a aplicação do recurso, ainda restou um saldo de cerca de R$ 300 mil. A preocupação de Leandro é que a não utilização da verba faça com que o recurso não seja mais repassado ao município. No relatório, a Prefeitura garante que as necessidades dos usuários estão sendo atendidas conforme as solicitações do Departamento de Proteção Social Especial. O vereador disse que vai cobrar novamente da Prefeitura explicações sobre os repasses feitos também no ano de 2018. 

    O vereador ainda questionou quais foram os motivos para a transferência de endereço do Centro Pop. O Centro funcionava desde 2015, na Rua Floriano Peixoto, no Centro. Em julho do ano passado, foi transferido para a Rua Visconde do Bom Retiro, também no Centro. No relatório, a Prefeitura diz que o imóvel que era usado anteriormente não apresentava condições de acessibilidade a pessoas com deficiência e/ou mobilidade reduzida, que estava com problemas na estrutura e que as adequações necessárias ocasionariam um custo alto para o governo. Além disso, haviam reclamações de vizinhos em relação aos usuários e que o imóvel estava passando por uma vistoria do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac). 

    Motivado por uma denúncia de que a casa estaria em mau estado, o Iphan vistoriou o imóvel que fica na Rua Floriano Peixoto em abril do ano passado. O escritório técnico averiguou e constatou que, embora o aspecto não fosse o ideal, não era nada tão grave. O Iphan disse ainda que a Prefeitura, responsável pela preservação do imóvel, informou, na época, que em função do Centro Pop estar saindo do local, não via urgência em fazer os reparos. Até julho deste ano, o Iphan não tinha recebido qualquer projeto para restauração do imóvel, e também para o imóvel que fica na Rua Visconde de Souza Franco. O Inepac também foi questionado sobre a vistoria apontada pela Prefeitura, mas até o fechamento desta reportagem não respondeu ao questionamento.

    Foto: Bruno Avellar

    A diferença no valor dos aluguéis também chama atenção, já que gerou um custo de R$ 30 mil a mais por ano aos cofres públicos. Segundo o relatório da Prefeitura, em 2017, houve uma renegociação que levava em conta a regra de contingência financeira (decreto municipal nº 5/2017) no contrato de aluguel, reduzindo o valor de R$ 5.996,46 para R$ 5.500,00. Apesar da economia, a Prefeitura optou por transferir a sede do Centro Pop para um imóvel avaliado pela Comissão Permanente de Avaliação Imobiliária em R$ 8.000,00 mensais. Embora a localização da imóvel onde o Centro Pop está instalado seja na Rua Visconde do Bom Retiro, 528, no contrato, anexo ao relatório entregue pela Prefeitura, indica como endereço de locação a Rua Souza Franco, 528.

    “O Centro Pop era num local mais adequado e passou para um local que também gera uma preocupação. Tirou de um lugar mais tranquilo e levou para um local isolado, onde já existem registros de problemas. E ainda tem a questão do aumento do aluguel. A casa piorou em todos os quesitos”, disse o vereador. O imóvel onde funciona o Centro Pop não tem acessibilidade. A rua de acesso tem o calçamento em estado precário. Os problemas de estrutura na casa também foram apontados pela Defensoria Pública, após uma vistoria feita no ano passado. 

    Segundo Leandro, ainda neste ano será realizada uma Audiência Pública na Câmara para discutir ações que possam de fato apoiar a população de rua. “O Nis também é uma dúvida para nós: as pessoas não querem ficar lá e nós nos perguntamos o porquê. Se é a estrutura ou modo como são tratados lá. Há ainda o fechamento do terminal, que beneficia o usuário, mas prejudica a pessoa em situação de rua que se abriga lá. Queremos saber que solução vão propor. Todas essas questões queremos desvendar nessa audiência pública”, disse. 

    Ter dignidade para a maioria das pessoas é ter uma moradia decente, um emprego que garanta o seu sustento, educação e saúde com qualidade, acesso à assistência básica, entre outros. Para milhões de brasileiros que vivem em situação de vulnerabilidade, a dignidade plena está muito longe de ser uma realidade palpável. Elaborar políticas públicas que deem acesso a esses direitos básicos não é tão simples assim. A estigmatização e a discriminação são impedimentos reais para aplicação de uma política intersetorial que mude efetivamente a realidade dessa população. Nesta reportagem, conversamos com a psicóloga Pollyanna da Silveira, que é professora na graduação e mestrado do curso de psicologia na Universidade Católica de Petrópolis (UCP), sobre as consequências da estigmatização social que isola a população em situação de rua. 

    Construída socialmente, culturalmente e historicamente, a estigmatização em relação à população de rua está em geral associada a desvios de conduta, como o uso de drogas, a criminalidade, a processos de moralização e uma fraqueza de caráter, como explica Pollyanna. “Essa percepção negativa que a população geral tem sobre as pessoas em situação de rua contribui muito para uma estigmatização estrutural, na maneira como a gente vai construir políticas públicas direcionadas a essas pessoas. Porque se você entende que é uma fraqueza de caráter, como vai entender a necessidade de se ter uma política pública de acolhimento e cuidado a essas pessoas?”. 

    O sistema que oferece a assistência, acaba sendo o mesmo sistema que oprime essa parcela da população. “Como o estigma social está muito ligado a essa percepção, o preconceito que a população geral tem sobre essas pessoas alcança também os profissionais que fazem parte desse processo. E muitas vezes podem legitimar o processo de discriminação. A gente tem muitas vezes o serviço social que vai fazer a abordagem, mas ele também faz parte de um sistema que viola direitos. Então essas pessoas sofrem em vários níveis. E isso traz uma série de consequências na saúde e socialmente”, disse.

    A internalização é a principal delas. Com medo da rejeição e discriminação, muitos não procuram a assistência social e até mesmo os serviços de saúde. Ainda que não tenham passado por uma experiência de rejeição, cria-se uma expectativa de que podem ser rejeitadas pelos serviços. A psicóloga explica que por causa da estigmatização o problema não é tratado com a complexidade que exige.

    “O assunto é muito mais tratado no âmbito da segurança e de outras questões do que de uma maneira mais ampla como exige. Essas pessoas já estavam em situação de exclusão antes mesmo de irem para as ruas. Porque o perfil é de pessoas que já estavam em situação de vulnerabilidade, com baixa escolaridade, com subemprego, em situação de moradia irregular. Não é de pessoas que tinham tudo isso garantido e de repente foram parar na rua. Em geral, são pessoas com um histórico de vulnerabilidade e violência”.

    A crença de que a ida às ruas é consequência da dependência e do uso de drogas ou por causa dos transtornos mentais é outro impedimento. E com a crise econômica, mais pessoas correm o risco de ficar em situação de rua. Em Petrópolis, teve um aumentou em 50% em um ano. Hoje, são cerca de 200 pessoas em situação de rua no município. Entre as discussões sobre o tipo de assistência adequado para essa população, as políticas públicas disponíveis se tornam uma violação de direitos. 

    “Num geral, as políticas também têm que ter um cuidado já que essa visão moralizante, também acaba pautando a agenda pública. A gente tem discussões de internação compulsória, que são medidas que muitas vezes violam os próprios direitos humanos. Medidas que são tomadas e que são pautadas nessa estigmatização”, pontua.

    O Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua (Centro Pop) e o Núcleo de Integração Social (Nis), atendem, juntos, cerca de metade da população de rua na cidade, diariamente. No município, 85% dos usuários dos equipamentos públicos são assistidos também pelo Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e outras Drogas (Caps AD III). Recentemente a cidade do Rio de Janeiro se tornou a primeira capital a adotar a internação involuntária de usuários de drogas, especialmente do crack. A medida que tem sido apontada por especialistas como higienista, foi adotada no início deste mês, após o episódio que ocorreu na Lagoa,  em que um homem em situação de rua que, em surto, esfaqueou três pessoas e matou duas. 

    “A internação compulsória implica em uma medida puramente higienista. Então você precisa tirar essas pessoas do convívio, e só. Não existe preocupação de cuidado, não existe planejamento e nem protocolo a ser seguido. É uma medida puramente higienista, sem considerar quais as necessidades dessas pessoas. Usuários que conseguiriam fazer o tratamento nos centro ambulatoriais. A gente acaba desmantelando esses serviços e focando em uma única medida”, completa. 

    Crianças e adolescentes em condições de vulnerabilidade

    Morar na rua e estar na rua são situações distintas, mas as duas são resultado da desigualdade socioeconômica e da extrema pobreza, que atinge pessoas de qualquer idade inclusive. Em Petrópolis, não há registro de casos de crianças morando nas ruas, mas como resultado da vulnerabilidade, não é difícil encontrar crianças e adolescentes vendendo doces e balas nas ruas do Centro.  

    “A gente tem crianças que evadiram da escola e que ficam no sinal vendendo coisas, como acontece em Juiz de Fora, por exemplo. Muitas crianças que ficam nessa situação não pode ser considerada como situação de rua, mas é uma situação de vulnerabilidade na rua”, explica a psicóloga Pollyanna.

    O menor que se encontra nessa condição fica exposto a todo tipo de violação. A rua que muitas vezes é tida como um espaço de liberdade, esconde o lado obscuro da negação de direitos como educação, saúde, lazer, convívio familiar e social. Por estarem em fase de desenvolvimento, a violação a que estão sujeitos impacta de forma negativa no seu processo de crescimento e amadurecimento. 

    Conversamos também com o promotor de justiça da infância e juventude, Vicente Mauro Júnior, que fala da preocupação que estes casos trazem, principalmente, no que diz respeito à erradicação do trabalho infantil. São crianças em idade escolar e que podem estar evadidas da escola para fazer esse tipo de trabalho nas ruas. A proteção e os direitos da criança e do adolescente são garantidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). 

    Casos de violação de direitos desses menores chegam até a promotoria por meio de denúncias na ouvidoria e pelo atendimento do Conselho Tutelar. “A orientação nesses casos é que o conselho faça a intervenção para ver qual situação aquela criança está vivenciando. Uma das finalidades do conselho é desjudicializar essa situação. Primeiro verificar se poderia ser uma coisa pontual, ou se está acontecendo com uma certa frequência. Verificar se a criança está estudando. Porque não é o momento daquela criança estar naquele tipo de trabalho”, orienta.

    Essa situação de vulnerabilidade pode estar associada a alguns fatores como trabalho infantil, violência sexual, consumo de álcool e drogas, violência intra familiar, encarceramento dos pais, mendicância, entre outros. O que também ocorre são famílias vindas de outros municípios, que passam o dia trabalhando nas ruas e no fim do dia voltam para o município de origem. “A atuação do conselho é importante para fazer principalmente esse primeiro contato, para verificar se essas pessoas são daqui. E fazer um contato com o conselho do município de origem para acompanhar o caso”, completa. 

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