• Violência emocional ou psicológica: as cicatrizes que ninguém vê

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  • 15/10/2019 16:48

    “Uma vez quando estávamos no carro dele, eu fui mexer no porta-luvas e deixei cair alguma coisa. Ele gritou. Disse que eu não tomava cuidado, que eu tinha que prestar atenção. Era uma coisa boba, só algum objeto que tinha caído e eu já tinha pegado pra colocar no lugar. Mas também teve aquela vez em que me maquiei para ir trabalhar e ele me interrogou sobre o motivo de eu estar me arrumando, se eu estava esperando encontrar alguém. E para evitar brigas eu limpei a maquiagem. E também teve aquela vez, lá no início do namoro, em que ele falou para eu não usar as roupas que eu gostava, porque eram bregas. E começou a me dar roupas do gosto dele de presente, para que eu não usasse as minhas”. 

    Por 14 anos, a relações públicas Marcela Siqueira, de 44 anos, viveu essas e outras situações semelhantes ao lado do ex-marido. “Você vai aceitando aquilo por medo, insegurança, amor… Por achar que pode mudar o outro. É o que você sente quando o abusador faz aquilo, como ele (ex-marido) fazia comigo, quando gritava, quando me chamava de burra, me xingava com palavrões. Aquilo era quase uma rotina”.

    A violência emocional e psicológica é a forma mais sútil de humilhar, desmerecer e aprisionar o outro. O abusador usa as palavras para agredir, para fazer a vítima perder a autoestima, o amor-próprio e muitas vezes a faz acreditar que não merece nada além do que ele tem a oferecer. “Eu sou o único que te aguenta”. “Você não vai achar ninguém no universo melhor do que eu”. “Ninguém vai te amar como eu”. Frases que parecem juras de amor, mas que no fundo só funcionam para causar mais medo e sensação de dependência nas vítimas. 

    Marcela levou alguns anos pra perceber que não era natural ser tratada daquela forma. Que as brigas constantes e humilhações que sofria, não eram “coisas de casal”. Quando manifestava que não tinha gostado da forma como tinha sido tratada, as desculpas vinham em forma de culpa. “Perdi a cabeça, não vou mais fazer aquilo. Mas só agi dessa forma porque você me provocou, foi você que me fez fazer aquilo”. 

    “Eu era sempre a louca pra todo mundo, a irresponsável, a que tornava o ambiente inadequado. Ai você começa a acreditar nisso”, disse. Por vergonha e medo, Marcela começou a se afastar da família e dos amigos. “Você começa a se tolher para não desagradar o outro. Eu vivia como se estivesse equilibrando pratos, sempre com medo de gerar algum desconforto que gerasse alguma briga. Passei a vida inteira tentando esconder, tinha vergonha do relacionamento que eu vivia. Vergonha dos vizinhos, dos amigos, dos meus filhos, da minha família”, disse. 

    A psicóloga clínica Renata Jungstedt explica que muitas mulheres têm dificuldade em identificar que esses comportamentos são um tipo de violência, porque muitas vezes eles são naturalizados pela sociedade.“A mulher naturaliza essas condutas, acha que é normal, que homem é assim mesmo. Isso advém obviamente do machismo na nossa cultura. Então é difícil até porque as vezes a mulher é julgada pela conduta do homem. E ela própria acaba entendendo esse tipo de comportamento como natural dentro de uma relação”, disse. 

    Esses abusos não acontecem de uma forma tão explícita como uma ameaça ou humilhação, eles acontecem de forma subjetiva, mais velada. Aos poucos o psicológico da mulher vai sendo minado por aquela relação. “Ela começa a ter a autoestima prejudicada e isso não é uma coisa que acontece do dia para a noite. Vai perdendo a referência do que é uma relação saudável, vai perdendo a referência dela mesma. E esse comportamento muita vezes é associado ao comportamento ciumento do companheiro”, explica Renata. 

    Os danos para a saúde mental da vítima são diversos. Marcela conta que embora tivesse uma vida economicamente estável, tinha uma irritabilidade que não passava. Sempre angustiada e nada nunca estava bom. “O meu desejo de mostrar e falar disso é para que as pessoas abram os olhos. Meus pais e amigos vieram me alertar muitas vezes. Mas eu não ouvi porque não tinha informação. A falta de informação dá medo. Sempre fui independente, mas vivia uma dependência emocional”, disse.

    Desta relação, Marcela tem dois filhos, um de menino de 8 e um de 12 anos. Pedir o divórcio não foi fácil. A separação que, a princípio seria consensual, se transformou em litígio. E três processos na justiça. Entre eles, a notícia-crime que fez no Ministério Público após ameaças que recebeu por e-mail do ex-marido. O que fez também com que pedisse uma medida protetiva. 

    “A violência emocional precisa ser mais falada. Essa violência é qualquer comportamento que cause prejuízo emocional, que impacte na diminuição da autoestima daquela pessoa, quando ela se sente controlada. Um comportamento que vise desagradar ou desqualificar o tempo todo essa pessoa. Seu trabalho, suas crenças, suas características físicas, intelectuais, humilhação, tudo isso constituí um comportamento de violência subjetiva emocional”, completa Renata. 

    Redes de apoio são fundamentais para combater a violência contra a mulher

    “Se não fosse meus pais e minhas irmãs, não sei o que seria. A família é extremamente importante, nunca devemos omitir. Procurar uma rede de apoio para conseguir sair dessa situação”, disse Marcela. Além do apoio legal e jurídico, buscar apoio emocional e psicológico com familiares, amigos e grupos de apoio a mulheres vítimas de violência podem ajudar a superar esta situação. 

    A psicóloga Renata faz parte do grupo terapêutico Resgate da Loba. Um grupo formado por mulheres que oferece apoio e acolhimento para mulheres vítimas de violência doméstica, seja ela verbal ou física. O grupo promove encontros semanais no Centro Cultural da Fase, na Avenida Barão do Rio Branco, onde as participantes podem partilhar suas histórias e receber apoio para o enfrentamento da violência que sofreu, ou para ajudar pessoas próximas que estejam nesta situação. Os encontros acontecem sempre as segundas-feiras, às 14h, no Centro Cultural da Fase, que fica na Avenida Barão do Rio Branco, 1.003, Centro. É gratuito e aberto. E no próximo domingo, dia 20, às 9h, terá uma caminhada no Parque Natural Municipal que fica na Avenida Ipiranga, no Centro. Mais informações pelo telefone (24) 99313-9384 (Gabriela Passos). 

    Existem ainda canais para denúncias. Tem o Disque Denúncia (0300 253 1177), ou pelo próprio aplicativo do órgão. A Polícia Militar recebe denúncias pela Central 190, e tem o serviço da patrulha Maria da Penha que atua exclusivamente para atender este tipo de caso. As delegacias da Polícia Civil pelos telefones (24)2222-7094 ou  (24) 98816-3939 (Whatsapp) – 105 ª DP e (24) 2291-0816 ou (24) 99250-0697 (Whatsapp) – 106 ª DP. Ou ainda pelo CRAM que funciona de segunda a sexta-feira, das 8h às 17h, na Rua Santos Dumont, 100 – Centro. O telefone de contato é (24) 2243-6152 ou, em caso de emergência, pelo número (24) 98839-7387. 

    Mulheres suas histórias no livro “Paixão e Esperança – a violência contra a mulher”

    A violência doméstica amordaça as vítimas de muitas formas. Por meio do medo, da sensação de incapacidade e dependência, mulheres sofrem caladas por anos dentro de relações conjugais. A advogada Marilene Cunha, viveu por 17 anos uma vida de abusos físicos e constante ameaça. Ainda antes da criação da Lei Maria da Penha enfrentou a justiça e o ex-marido para conseguir viver a própria vida. Seu relato é um dos que estão sendo contados no livro “Paixão e Esperança – a violência contra a mulher”, do escritor Felipe Candiota. 

    Crises agressivas de ciúmes, ameaças de morte, agressões e violência sexual como estupro marital, são alguns dos relatos das seis mulheres que contam suas histórias no livro. O tema principal é o assassinato de Luciana Vieira Rodrigues, e de seus três filhos, que ocorreu em março de 2017, no bairro Floresta. O caso de feminicídio chocou a cidade e chamou a atenção do autor, que a partir desta história deu voz a outras vítimas. 

    O livro, da editora In Media Res, foi lançado durante a Festa Literária da Serra Imperial (Flisi), no início do mês. Na construção da obra, Felipe conversou familiares e pessoas próximas que acompanharam o caso na época, jornalistas que cobriram o caso, policiais e membros do judiciário. Ao todo, há o relato de seis mulheres que passaram por casos semelhantes. 

     

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