Vinicius, trabalhador da palavra
O cuidado da família de Vinicius de Moraes com sua obra era constante. “O primeiro poema escrito por ele, aos 8 anos, é um dos documentos que estarão no Acervo Digital, assim como seus últimos escritos”, comenta Julia Moraes, neta e idealizadora do projeto. “O zelo era dele também, pois é possível acompanhar a evolução criativa, por exemplo, do poema O Avesso: há várias versões escritas ao longo de dez anos, é um mapa da criação. E não são só acertos, ali estão os erros também. Acredito que isso valorize todos os artistas.”
Vinicius, de fato, era perfeccionista e não sossegava enquanto não atingisse o resultado considerado ideal. Especialmente quando compunha letras de canções. “É possível notar como ele era rígido em buscar a métrica correta, a sílaba tônica ideal para a melodia”, observa Marcus Moraes, sobrinho-neto do poeta e responsável pela coordenação técnica e design do Acervo Digital, que nasceu a partir do desejo de preservar digitalmente o arquivo, incentivar a pesquisa e democratizar o acesso à obra de Vinicius.
Pesquisar o vasto material criado pelo artista representa uma viagem no tempo e também geográfica. Afinal, homem afetuoso, aberto a novas amizades, Vinicius passou por cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Salvador, Ouro Preto, Montevidéu, Buenos Aires, Paris, Oxford e Los Angeles, seja na função de diplomata, seja em excursões como músico. E, nesse trajeto, manteve contato com as mais diversas figuras, de Mãe Menininha do Gantois a Orson Welles, de Baden Powell a Pablo Neruda, sem se esquecer dos grandes parceiros nas canções, como Tom Jobim e Toquinho.
Quando o Acervo Digital estiver disponível, a partir do dia 27, fãs e pesquisadores poderão conhecer a magnífica escrita de Vinicius em ordem cronológica, o que permitirá notar com mais clareza sua evolução e, principalmente, como o poeta passou de uma evidente preocupação religiosa no início da carreira para temas mais mundanos, como o cotidiano das pessoas e, principalmente, as relações amorosas.
“Será possível também fixar sua trajetória em um determinado momento, como, por exemplo, descobrir tudo o que Vinicius escreveu no ano de 1968”, continua Marcus.
O acervo está dividido em três grande séries. A primeira, Correspondência, compreenderá cartas, cartões e telegramas recebidos tanto de amigos como de figuras relacionadas ao seu trabalho como diplomata. É curiosa a troca de informações que Vinicius mantinha com seus colegas escritores, como uma carta enviada a Manuel Bandeira em que o poeta solicita uma leitura crítica de seus poemas. Em outra, pede a opinião sobre versos de seu poema Pátria Minha, com receio de ter problemas políticos.
Será possível também se divertir com a troca de confidências com grandes amigos, como na carta em que Tom Jobim comenta com Vinicius a exigência de um produtor francês para que a dupla compusesse mais rapidamente as canções que formariam a trilha sonora do filme Orfeu Negro (1959), dirigido por Marcel Camus e que ganhou o Oscar de melhor longa estrangeiro.
“Na carta, se descobre que o tal produtor anunciava que contrataria um músico mais veloz na criação e que seria Dorival Caymmi. O texto termina com um Há Há Há”, diverte-se Julia, lembrando que o grande cantor e compositor baiano era conhecido pela falta de pressa ao criar seus clássicos.
A segunda série, Produção Intelectual, traz uma documentação abrangente, que revela o extenso campo de atividades nas quais Vinicius se dedicou ao longo da vida: poesia, textos em prosa, artigos, peças, letras de música, shows, roteiros de cinema, discursos, entrevistas e traduções. Assim, será possível observar as diferentes versões do roteiro de Les Amants de la Mer e detalhes da produção até o roteiro final de Garota de Ipanema.
Aula
“Há também o roteiro decupado de Orfeu Negro, com todas as anotações técnicas, uma aula de cinema”, nota Marcus, lembrando ainda da presença da curiosa entrevista em que Vinicius contou que adaptou a peça Orfeu da Conceição para o cinema em apenas 15 dias.
Já a área reservada à criação musical traz mais de 260 letras e, assim como os poemas, muitas apresentam mais de uma versão – Insensatez, Chega de Saudade e Canto de Ossanha, por exemplo, têm quatro, enquanto Canção do Amanhecer contém nove versões.
“Como a reprodução dos documentos será fiel ao original, vai ser possível notar detalhes curiosos, como a anotação de uma conta de somar no canto do papel onde ele rascunhou a letra de Insensatez”, diz Julia.
Outro destaque é a documentação completa de Brasília: Sinfonia da Alvorada, poema sinfônico de Vinicius e Tom Jobim feito a pedido de Juscelino Kubitschek e Oscar Niemeyer para a inauguração de Brasília. “Em uma carta, Tom desabafa que a obra não foi bem compreendida”, comenta a pesquisadora.
Curioso também é um original datado de 1927, de Os Três Amores, uma imitação de A Ceia dos Cardeais, de Júlio Dantas. Em um canto, nota-se uma observação: “Foi feito com a idade de 14 anos. Peço, pois, ao leitor ser bondoso comigo”.
Julia gosta particularmente de um documento, ao qual Vinicius deu o título de O Dever e o Haver. Semelhante ao balanço fiscal que as empresas fazem em sua contabilidade, o trabalho representa uma prestação de contas do poeta, mas com a sua arte.
A terceira série intitula-se Documentos Diversos e reúne folhetos, cadernos de anotações, cartões de visita, convites e documentos importantes para o estabelecimento da história do cinema no Brasil – ali está um dossiê sobre a criação do Instituto Nacional do Cinema.
Além das séries, o projeto Acervo Digital vai contar ainda com o podcast Caderno de Leituras de Vinicius de Moraes, inspirado no livro publicado pela Companhia das Letras, e também um minidocumentário dirigido por Julia, que mostra como são guardados e organizados documentos raros, além do processo de digitalização do acervo.
Como se trata de um vasto material, Julia e Marcus pretendem abrir futuramente novas frentes, como exibir todas as matérias publicadas por Vinicius na imprensa. “Ao final, quem consultar toda essa obra vai descobrir o esforço físico e artístico de Vinicius, um homem que se dedicou ao trabalho”, comenta Marcus. As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.