• Vacinação: liberdade versus coletividade?

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  • 24/04/2022 08:00
    Por Daniel Machado Gomes* e Raphaela Abud Neves**

    O fim das medidas restritivas contra o coronavírus confirma o histórico exitoso das políticas públicas de vacinação em massa, embora movimentos antivacina no Brasil e no mundo tenham ressurgido em nome da liberdade individual, durante a pandemia de Covid-19. Qual fantasmas vindos do passado, esses movimentos replicaram argumentos já invocados anteriormente, como se percebe, por exemplo, nas discussões travadas em torno da Revolta da Vacina. A insurreição de novembro de 1904 mobilizou personalidades políticas e fez com que cidadãos tomassem as ruas do Rio de Janeiro em protesto contra a lei que tornou obrigatória a vacina contra a varíola. Naquela época – assim como agora – o discurso contra a vacina serviu para a afirmação de uma posição político-ideológica que, através de argumentação sofística, contrapôs a ciência à liberdade.

    No final do século XIX, a cidade do Rio de Janeiro contou com crescimento demográfico significativo ocasionado vinda dos imigrantes europeus. Esse contexto acabou potencializando problemas de moradia, saneamento e higiene na capital. Isso fez com que as questões sanitárias entrassem para o debate público, provocando resistência da população em relação às medidas adotadas por médicos sanitaristas e higienistas. Os agentes do Estado passaram a ter autorização para entrar nas habitações coletivas, promovendo desinfecções, expurgos e demolições, o que aumentou a revolta da população. A possibilidade de realizar a vacinação forçada desencadeou atos de violência física contra a população, que enxergava o projeto de urbanização e saneamento do Rio como parte de um plano de aburguesamento da capital.

    Não demorou para que diferentes personalidades políticas percebessem que estavam formadas as condições ideias para uma verdadeira tempestade política e enxergassem no descontentamento popular uma chance de derrubar o governo instituído. Aproveitando a insatisfação das camadas mais pobres, monarquistas, militares e parlamentares que faziam oposição ao governo uniram-se contra Rodrigues Alves e contra a obrigatoriedade da vacina em nome da moralidade das famílias, da intangibilidade do corpo, da liberdade individual.

    Passado pouco mais de um século da Revolta da Vacina, o argumento da liberdade individual renasceu e, novamente, atores políticos se aproveitaram de um momento de instabilidade para promoverem seus próprios projetos de tomada e manutenção de poder, em nome da liberdade. Todavia, a queda no número de contaminações e mortes pela Covid reafirma o sucesso da vacinação em massa e comprova que, tanto quanto no passado, o dilema liberdade versus coletividade se revela muito mais um sofisma do que um problema ético. Afinal, não é legítimo o uso da liberdade contra a subsistência da comunidade, expondo a risco a saúde pública. Liberdade difere de livre arbítrio pois não é uma prerrogativa absoluta para agir como se queira. Como qualquer direito fundamental, a liberdade individual tem sua extensão delimitada pelos demais direitos fundamentais, entre os quais, encontra-se o direito à saúde pública.

    *Daniel Machado Gomes é doutor em Filosofia. Professor Coordenador do PPGD/UCP, daniel.machado@ucp.br

    **Raphaela Abud Neves é mestranda em Teoria e Filosofia do Direito no PPGD da UERJ; raphaelaabud@gmail.com

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