Uma Coragem Assim
Ao mesmo tempo em que da pandemia nos protege, a máscara nos esconde. Mas, insígnia de nossas carências, também nos revela. E é duro descobrir. Somos tão frágeis! Por isso, por detrás da cortina da máscara obrigatória, muitas vezes sofremos, nestes tempos difíceis. Mas sorrimos, também.
Com tal alternância, talvez melhor entendamos mulheres de burca. Seus anseios, tristezas e mistérios ocultos na oca da inflexível veste. Hoje, ninguém vê a flor do nosso sorriso, quando ele acontece. Mas nossos olhos dissertam. Apelos, afagos, enquanto uns aos outros dizemos, com a voz abafada: vai passar. “Vai passar”, é um dito reconfortante. O utilizamos quase como um cumprimento. Bom dia, vai passar. Vá com Deus, vai passar. Como vai?, vai passar.
Acho bom que assim seja. Se não podemos agora abraçar, que palavras carreguem nosso coração até ao peito do outro. Porque precisamos muito de corações conjugados, se nutrindo. É que, embora viver sempre tenha sido desafio, mais do que antes, hoje, viver é mesmo uma coragem. É reinventar o ser, o jeito de existir, nesses tempos de evitar as ruas, fugir dos grupos, dispersar as muitas pessoas. Mas ao mesmo tempo, fazer todo o possível para a vida andar pelos caminhos possíveis.
Assim vamos. Como sobreviventes de carnificinas, que passaram décadas ocultos em catacumbas, mas saíram para pregar Boas Novas à luz do sol. Como vietcongues lutando uma guerra impossível em túneis no ventre da terra, mas que puderam um dia sacudir ao vento suas bandeiras. Como judeus refugiados e mudos em compartimentos secretos de casas holandesas, que sobreviveram para honrar a memória dos mortos, levantando seus dedos contra a torpeza nazista. Como poetas escrevendo poemas de luz nas paredes do cárcere, que depois, os recitaram em praças abertas e livres. Como o escravo desde menino acorrentado como uma mula ao moinho, preparando no esforço a musculatura espessa para as vitórias futuras de quando se tornaria um guerreiro liberto.
Assim seguimos. Em nossos confinamentos, cautelas, novo normal destes tempos anormais. Assim seguimos. Que tenhamos uma tal coragem. De suportar as agruras de agora, para então vencer e cantar Boas Novas, sacudir bandeiras ao vento, honrar nossos mortos, recitar estrofes nas praças e vencer futuras batalhas. Uma coragem assim. Dessas flores que, entre secas pedras e intempéries ferozes se esgueiram e brilham. Uma coragem assim. De peixes que enfrentam a correnteza para procriar nas nascentes. Uma coragem assim. De cegos sertanejos que sobrevivem na lucidez do seu canto. Que tenhamos uma coragem assim. De Clara Marinho (c_larinhamar), a linda menina que, mesmo com limitações motoras por conta da paralisia cerebral, não só não deixa sua deficiência física a limitar, como ainda, estudante de letras que é, elabora maravilhosas mensagens que ajudam a incrementar a autoestima e levantar o ânimo de tantas pessoas. Uma coragem assim, clarinha como a madrugada. Bom dia, vai passar.