• Um Silva e uma Maria

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  • 14/abr 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    — O senhor pode levantar um pouquinho mais o rosto? Olhe pra câmera… Pronto!  Essa foto é pra colocar no seu cartão de passagem. Quando estiver pronto, o senhor vai receber um aviso por e-mail…

    A gratidão da humildade é que me faz acreditar no ser humano. Na quarta-feira passada (10/04), na escola em que trabalho, efetuei a matrícula de um senhor que me fez ganhar o dia. Ele se aproximou da secretaria. Ao identificar o seu jeito manso, a sua timidez, antecipei-me. Levantei para atendê-lo. Havia um silêncio, algo retido: os ombros curvados, retraídos para dentro, os cabelos brancos, o olhar para baixo, os braços estáticos rentes ao corpo. Estava ali em um ato heroico: voltar a estudar.

    Já efetuei inúmeras matrículas em processo de rotina. Mas essa a que me refiro ocorreu nas primeiras horas da manhã. A escola estava tranquila. Havia um silêncio raro, talvez por isso, eu consegui identificar a chegada de alguém que vencia seus próprios obstáculos. Estava ali em um ato de superação. Quando me entregou os documentos, vi as mãos trêmulas. Venceu a si mesmo. Não se derrotou. Não se deixou derrotar. Veio buscar recursos, veio buscar forças para enfrentar os obstáculos de uma competição selvagem imposta pelo mercado de trabalho, ou mesmo, simplesmente, veio procurar melhores condições para dominar uma linguagem digitalizada que se aprimora velozmente, sem esperar por ninguém, ou nada do que estou aqui especulando. Quis somente voltar a estudar. Isso basta…

    Não fiz nenhuma pergunta que pudesse incomodá-lo, nem me ative ao ano do seu nascimento. Pela melodia do fraseado com poucas palavras, percebi um sotaque que nos aproximava. Pensei: “é nordestino”. Os documentos apresentados foram escaneados e colocados em pasta digital. A matrícula foi “efetuada com sucesso”.

    Trabalho em uma escola pública voltada para jovens e adultos, em sistema semipresencial que se flexibiliza para acolher os estudantes dentro da realidade dos horários deles. Por isso, temos vários alunos e alunas que pertencem à chamada terceira idade. E, nessa, estou dentro. Há uma satisfação imensa em ver as pessoas ganhando autonomia, empoderamento, assimilando conceitos para obter discernimento e tomar decisões em legítima defesa.

    É preciso ter coragem para recomeçar já perto do fim. Lutar pela vida até o último suspiro. Não desistir, não desesperar. Confesso que vibro muito com as vitórias dos heróis anônimos: os silvas, os josés, os joões, as joanas, as marias, as severinas, os severinos, os beneditos, as beneditas, a gratidão dessas pessoas simples me comovem. O “viver e ser feliz” torna-se mais fácil assim pelo despojamento.

    Efetuar uma matrícula em uma instituição de ensino em busca de escolaridade vai além de um ato burocrático, é abrir portas para o conhecimento. O saber vem pela vivência, pela experiência que se acumula no dia a dia. São muitos que precisam de um certificado, de uma declaração de escolaridade. O bater carimbo e dar assinatura não podem se transformar em atitudes mecânicas, é preciso reconhecer a função social do serviço público. É também dever do Estado oferecer cursos de capacitação aos cidadãos para que possam acompanhar o que chamam de progresso.

    Fico nessa condição de aprendiz com muito orgulho. Ganho força para viver, vendo tanta gente se superando, vibrando quando recebe o famoso “canudo” de formatura.  Quero estar presente na conclusão do curso em que esse senhor se matriculou.

    Nessa quarta-feira que mencionei, estive presente na despedida de uma senhora, uma Maria, que partiu para a outra dimensão da vida, a eterna, que considero a Casa do Pai. Sim, acredito na vida eterna. A expressão que sintetiza a passagem dela por este mundo consiste em: “muito obrigado”.

    Nos últimos instantes de vida, usou o ar, que ainda lhe restava nos pulmões, para sussurrar ao médico que estava ao seu lado: “muito obrigado” – partiu agradecendo a vida. A simplicidade não é teoria, é prática.

    Para finalizar esta nossa prosa de hoje, quero apenas lembrar que, nas redes sociais, no mundo virtual, não há como encontrar este calor que as nossas vísceras emitem quando movidas pela gratidão: – obrigado pela leitura deste texto. Sinto necessidade de compartilhar o que aprendo…

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