Um mundo menos humano
A gula por comodidades se casou com a lei do menor esforço. A célere benção veio da onipresente rede de computadores multiplicadora de bytes e bandas de nuvens cada vez mais largas. Vai-se um modo de viver o mundo. A pressa comanda e o excesso faz a fila andar.
Aplicativos de automóveis atropelaram os táxis. Corridas baratas, em serviços sem impostos, à margem da legalidade. Em tempos de desemprego alto e oportunidades parcas, motoristas mourejam em trabalho quase escravo, por vezes. Surgiram tímidas leis aqui, taxas ali, os táxis criaram aplicativos próprios, e até hoje não se sabe se o mundo ficou mesmo melhor. O que comandou a revolução foi o “meu pirão primeiro” de todo mundo que quer facilidades baratas. Ainda que signifique subemprego de quem vai entregar o serviço.
A troca de músicas pela internet detonou o mercado de discos, destruindo postos de trabalho. A farra de satisfazer desejos a custo zero, mesmo sabendo ali haver fraude e furto, comandou os apetites musicais. Artistas chiaram, o desemprego no setor bateu recordes, mas o CD virou um finado. Alguma regulamentação inibiu a troca franca de músicas. Não a impede totalmente, que pirataria é coisa criativa e indomável. Para quem gosta de andar “dentro da lei”, a fome de novidades se viu atendida pelos serviços pagos de “streaming” como o Spotify.
Pobres das locadoras de vídeo, que há pouco imaginavam sobreviver à voracidade destruidora dos tempos com a então última novidade que era o Blu-Ray. Viram-se despejadas do coração dos usuários, também pelo streaming. A Netflix oferece a mesma alta definição, com cardápio mais recheado que o de uma locadora média. Na locadora de qualidade você pode até contar com acervo qualificado, onde filmes clássicos, por exemplo, serão mais facilmente achados. Mas não dá pra competir com o gigantismo do estoque da Netflix: no Brasil, 3.540 opções em catálogo diariamente alterado.
O mercado de imóveis passa momento parecido. Aplicativos oferecem transações diretas entre vendedores ou locadores e compradores ou locatários, detonando imobiliárias. E isso nas vendas em geral, em verdade, pois lojas virtuais e sites como Mercado Livre e OLX empobrecem as lojas físicas.
E chegamos ao que mais me dói o coração, nestes tempos. A devoração das livrarias físicas pelas virtuais. A livraria física, como a locadora de rua, era coisa humanizada. Estantes percorridas com vagar, atrás de tesouros. O cheiro, o toque, o contato, o exame das capas, o diálogo com o vendedor, às vezes a presença de um autor, tudo fazia da visita à livraria um ritual cultural muito querido. Quando menino, sem dinheiro, eu percorria os balcões das várias que havia em Petrópolis, lendo em cada uma, um capítulo diferente do livro desejado, até completá-lo com a conivência de compreensivos livreiros. Um dia os pude comprar. Não gostei muito quando vieram as megastores. O gigantismo traía a livraria como ambiente intimista. Mas ia bem a novidade do café, pois a leitura na mesinha com a bebida quente era bom casamento.
Esse mundo de convívios reais e pechinchas olho no olho parece acabado. Mesmo reconhecendo que hoje só pela internet se alcança certos acessos, acho que ainda lamentaremos essa sede de conveniências, facilidades e preço baixo a qualquer custo. Os bytes nos têm tornado mais frios. Talvez, um pouco menos humanos. O que é aqui uma facilidade nossa, pode significar ali uma lágrima de desemprego.
denilsoncdearaujo.blogspot.com