Trump, Dória e o ilegal-xodó
É difícil compreender o funcionamento dos neurônios de nobres e doutos sabedores de tudo, sejam os novos “digital influencers” nas redes sociais, ou aquela velha-guarda foice e martelo que ainda domina os veículos de comunicação de massa, autoproclamados “formadores de opinião”. O imenso abismo entre um e outro e a farta conflagração acabaram criando uma nauseabunda espécie de simbiose capaz de subverter a definição de ilegalidade.
Vejamos o que acontece neste momento com Donald Trump. É feroz o ataque da maioria dos grupos de imprensa contra o novo presidente dos Estados Unidos que, obviamente, não trata jornalistas desses grupos com simpatia e acaba acusado de ignorante, pervertido e assassino da liberdade de expressão. É um jogo tautológico e simbiótico, porque fermenta os lucros do universo de mídias e concede publicidade diária e gratuita ao egocêntrico magnata que agora ocupa a Casa Branca.
Um dos alvos preferenciais dos tais “formadores de opinião” — especialmente na América Latina — é a política de Donald Trump de combate à imigração ilegal. O tema causa alvoroço internacional. No entanto, quem exercita um pouquinho sua capacidade cognitivo-neuronal percebe que o foco de Trump não são os imigrantes legais, cidadãos de outros países que vivem, trabalham, estudam, pagam impostos e criam suas famílias legitimamente em solo norte-americano. A proposta é combater com austeridade aqueles homens e mulheres que, desde a largada, aceitam cometer um crime para viver nos Estados Unidos, assumem o risco da ilegalidade. Combater o imigrante ilegal, na verdade, é um ato de prestígio e deferência aos imigrantes legais.
O resultado não poderia ser outro senão a tautologia e a simbiose a serviço de quem é mau-caráter. De um lado, hordas de imigrantes ilegais usam o esquizoide apoio de parte expressiva da imprensa planetária para fortalecer o teatro da vitimização. Extremo oposto, uma turba de norte-americanos xenófobos faz uso do imbróglio criado pela desinformação — e pelas informações levianas, fique claro — para exibir grotesca rejeição aos latinos, muçulmanos, orientais e congêneres, ainda que legalmente instalados nos EUA. Dá-se a desgraça.
Noutro exemplo, assistimos ao bombardeio diário contra o novo prefeito de São Paulo, João Dória. O último ataque teve como alvo uma das ações do programa “Cidade Linda”: a uniformização de extensos muros e paredões paulistanos, pintando com tinta neutra o que antes estava repleto de grafites coloridos, essa controversa forma de expressão que ganhou fama de “street art”, mas deixa dúvida se não é apenas tergiversação para traduzir “pichação-chique”. O duelo entre os (pré)conceitos de beleza urbana, arte e crimes contra o patrimônio público e privado tornou-se uma guerra bárbara e, tal qual nos EUA, a ilegalidade ganhou defensores fervorosos e, muito provavelmente, idiotas.
O que há de beócio nesse debate é esperar que o cidadão tenha uma compreensão tão apurada e de tal grandeza, que seja capaz de distinguir entre o marginal que emporcalha paredes com suas pichações e o artista que usa as pichações como instrumento de arte visual. Pior: espera-se que o primeiro se transforme no segundo pelas vias da caríssima conscientização institucional. Para além da subjetividade patente, trata-se de esperança demasiado ingênua — ou falso-ingênua, mixórdia politicamente correta — num país onde não são respeitadas as vagas para idosos e deficientes pintadas no chão do estacionamento, ou a exclusividade feminina nos vagões do metrô pintados em cor-de-rosa. Não é uma comparação grosseira e inadequada. Ao cerne, estou falando de cultura, lato sensu.
Não espanta, portanto, o desvio brutal, a inversão de valores éticos e o domínio do perverso. Eles nascem do processo doloso de desinformação dos idiotas-úteis. Essa idiotice consagra os “malvados favoritos”, algo que nas telenovelas levou o público a se apaixonar duas vezes por antagonistas que jogaram crianças no lixo ou por uma ladra de bebês assassina e narcisista; e na vida real dá fôlego e sustentação a criaturas como Eduardo Cunha e Lula da Silva. É a cultura de um tempo. E em tempo tão estranho, talvez o legal mesmo é ser um ilegal-xodó.
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