• Três morrem no RS após receber nebulização de cloroquina; MP investiga médica

  • 25/03/2021 21:52
    Por Eduardo Amaral, especial para o Esttadão / Estadão

    O Ministério Público do Rio Grande do Sul vai investigar a conduta da médica Eliane Scherer, que receitou nebulização com hidroxicloroquina para pacientes do Hospital Nossa Senhora Aparecida, da cidade de Camaquã, na região sul do Estado. Três pacientes da covid-19 que tiveram este tratamento morreram entre segunda, 22, e quarta-feira, 24. Esse remédio tem ineficácia comprovada cientificamente contra o novo coronavírus.

    A investigação foi informada pela promotora de Justiça de Camaquã, Fabiane Rios. O MP vai averiguar se o procedimento de nebulização com hidroxicloroquina está dentro dos protocolos corretos e da ética profissional. Em conjunto com a Polícia Civil, a promotoria fará oitiva com os envolvidos e vai cruzar com as orientações do Ministério da Saúde. “Em constatada eventual falta, esta será encaminhada na esfera cível e administrativa. Se for provada a imperícia da médica ao adotar tal procedimento, causando o óbito dos pacientes, sua conduta será apurada na esfera criminal”.

    Onyx e Bolsonaro

    Eliane ficou conhecida em todo Brasil após o ministro Onyx Lorenzoni divulgar em sua conta no Twitter vídeo no qual ela administra nebulização com hidroxicloroquina. No último dia 19, o presidente Jair Bolsonaro (Sem partido) também entrou ao vivo em uma rádio de Camaquã para sair em defesa do tratamento por meio da nebulização de hidroxicloroquina.

    Além de utilizar um medicamento amplamente rejeitado pela comunidade científica no tratamento da covid, a médica o fez de uma forma pouco usual. Segundo o diretor-clínico do Hospital Nossa Senhora Aparecida, Tiago Bonilha, a nebulização em pacientes covid é altamente contra indicada, pois aumenta a produção de aerossóis que podem transmitir o vírus. Especialistas consultados pelo Estadão apontam que a prática pode trazer ainda mais riscos de efeitos colaterais para os pacientes do que a administração oral do remédio. Nesta semana, o Estadão também mostrou que pacientes foram parar na fila do transplante de fígado após usar o kit covid, com remédios sem eficácia contra a doença.

    Eliane era integrante da escala de plantão do hospital, contratada por uma empresa terceirizada. Conforme Bonilha, ela já tinha um histórico de “incidentes de conduta”, mas nada que a levasse a ser demitida. “No dia que houve o primeiro episódio da terapêutica dela no pronto-socorro, foi solicitado o desligamento dela.” Bonilha diz que todos os problemas anteriores não seriam passíveis de demissão. Ele descreve o perfil de uma médica que criava dificuldades de acesso, na liberação de ambulâncias e macas e até mesmo, para atender as exigências de paramentação no setor de emergência.

    Toda essa dificuldade, porém, contrastava com um perfil bem visto na cidade. Tão logo foi feito o pedido de demissão, pacientes reclamaram.”A partir de então, iniciou toda uma campanha para que ela fosse reintegrada a essa escala porque ela salvava vidas”, conta Bonilha, mostrando que o discurso em defesa da cloroquina havia surtido efeito.

    Pacientes entraram na Justiça para ter acesso à terapia

    Os pacientes chegaram a entrar na na Justiça exigindo a continuidade da nebulização com hidroxicloroquina. O pedido foi acatado. Aproximadamente cinco pacientes tiveram o tratamento de nebulização com cloroquina. Destes, três morreram nesta semana.

    A médica teria se baseado na experiência de um único médico, que não é pesquisador a respeito do tratamento. “Em entrevista, ela chegou a falar quem é o médico que aplicou esse método. Mas o que acontece é que nunca vi nenhuma instituição séria fazer uso dessa medicação. Na minha opinião, essa prescrição transcende o caráter off label da categoria médica, tem uma série de protocolos de segurança que, a meu ver, fazem com que não seja uma terapia a ser aplicada”.

    Bonilha conta que Eliane não seguiu sequer os protocolos para informar a adoção do tratamento pouco convencional. “Fato que gerou uma quebra de harmonia entre ela e a equipe assistencial foi que na primeira vez que ela quis usar essa terapia, ela não formalizou essa prescrição. Ela orientou que fosse feita e o enfermeiro e o técnico me ligaram. A primeira coisa foi mandar ela prescrever no sistema formalmente o que ela quer que faça.”

    “O jeito com que a terapia foi apresentada, pareceu que aquilo fosse a salvação da pátria, a chance de cura dos pacientes graves”, conta Bonilha. Ao Estadão esta semana, o presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, negou rever o parecer que libera médicos a prescreverem cloroquina, mas admitiu investigar médicos que tratarem kit covid como cura.

    A proposta de Eliane era que estes pacientes seguissem internados no hospital, e ela então fosse até o local administrar o remédio por meio da nebulização. A direção do hospital então pediu que a transferência dos pacientes dos pacientes do tratamento convencional contra a covid para a experiência da médica fosse formalizada judicialmente, o que aconteceu e ela seguiu aplicando a terapia.

    Em entrevista a uma rádio local, Eliane chegou a falar que se “emocionava” ao ver os pacientes recuperando o ar. “A impressão que tenho é que de repente essa sensação de alívio que os pacientes percebem tão logo fazem a terapia pode estar relacionada ao simples aumento da pressão na via aérea ou melhor fluxo de oxigênio causada pela nebulização. Se fosse feita com soro, poderia ter esse mesmo efeito”, explica Bonilha ressaltando que esse procedimento não está prescrito para atender pacientes covid.

    A reportagem do Estadão procurou a médica Eliane Scherer para explicar sua versão dos fatos, mas ela afirmou que não pretende mais falar com a imprensa.

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