Travessias necessárias para uma sociedade biocentrada
Há uma percepção mais ou menos generalizada de que a vida humana no planeta Terra assim como se apresenta não pode continuar. Na verdade, ela se encontra numa encruzilhada: ou muda ou corre o risco de ir ao encontro de uma incomensurável tragédia ecológico-social. Há indicadores inegáveis. O mais sensível é o acelerado aquecimento global. Só em 2023 foram lançadas na atmosfera perto de 40 milhões de toneladas de CO2 que permanecem na atmosfera por cerca de cem anos. O aquecimento até 1,5ºC projetado para 2030 foi antecipado.
Das nove fronteiras planetárias (Planetary Boundieries: desde as mudanças climáticas até os microplásticos) seis já foram rompidas. Cientistas afirmam que se rompermos a sétima e a oitava pode ocorrer um desastre sistêmico, capaz de ameaçar a civilização. A disputa pelo domínio geopolítico do mundo entre os USA, Rússia e China pode culminar numa hecatombe nuclear, deixando o céu branco pelas partículas atômicas, introduzindo uma nova era glacial, extinguindo grande parte da humanidade e da biosfera, tornando miserável da vida dos sobreviventes. E outras mais como a grave escassez de água potável.
Se quisermos sobreviver sobre o planeta Terra precisamos fazer várias travessias inevitáveis.
– Da Terra tida como meio de produção e balcão de recursos entregue ao projeto de um crescimento ilimitado, para a Terra como um Super Organismo vivo, Gaia, Pacha Mama ou Mãe Terra, com bens e serviços limitados, muitos não renováveis.
– Do paradigma do poder/dominação em vista da conquista do mundo para o paradigma do cuidado da Terra viva e da comunidade de vida.
– De uma sociedade antropocêntrica, separada da natureza, para uma sociedade biocêntrica que se sente parte da natureza e busca ajustar seu comportamento à lógica da própria natureza e do processo cosmogênico que se caracterizam pela sinergia, pela interdependência de todos com todos, pela cooperação e por ser mais com menos.
– De uma sociedade industrialista, mercantilista e consumista que depreda os bens naturais e desestrutura as relações sociais de riqueza/pobreza para uma sociedade de sustentação de toda a vida e garantia dos meios de vida para todos os seres humanos.
– Da lógica da competição que se rege pelo ganha-perde e que opõem as pessoas e as empresas, para a lógica da cooperação do ganha-ganha que congrega e fortalece a solidariedade entre todos.
– Da era tecnozóica que, não obstante os benefícios reconhecidos que nos trouxe, devastou grande parte dos ecossistemas, para a era ecozóica pela qual todos os saberes e atividades se ecologizam e todos cooperam para salvaguarda do futuro da vida.
– Do antropoceno que faz do ser humano a grande ameaça à bioversidade para o ecoceno no qual a ecologia será a grande preocupação e todos os seres serão reconhecidos com um valor em si, portadores de direitos e devem ser respeitados.
– De redes sociais voltadas para a desinformação, divisões sociais e ameaças às instituições democráticas para redes como espaços de comunicação social civilizada e novos conhecimentos.
– Do capital material sempre limitado e exaurível, para o capital humano-espiritual ilimitado, feito de amor, de solidariedade, de respeito, de compaixão, de veneração e de uma confraternização como todos os seres da comunidade de vida.
– Dos Estados-nação para a Terra como a única Casa Comum que deve ser cuidada por uma governança plural para equacionar os problemas globais de toda a humanidade e do sistema-vida.
– Do projeto “um só mundo e um só império”, mantra da política externa estado-unidense, para “um só mundo e um só projeto coletivo de convivência e sobrevivência”, assumido por todos os povos.
Essa é a grande “conversão ecológica global” exigida pelo Papa Francisco em sua encíclica Sobre o cuidado da Casa Comum (2015, n.5). Em outro lugar diz: ”estamos no mesmo barco, ou nos salvamos todos ou ninguém se salva”.
Para garantir o futuro da humanidade e da própria biosfera, precisa triunfar um consenso mínimo de natureza ética: o conjunto de visões, valores e princípios que mais congregam pessoas e melhor projetam um horizonte de vida e de esperança para todos.
Seria a já denominada biocivilização ou a Terra da Boa Esperança que corresponde à Noosfera sonhada já em 1933 lá no deserto de Gobi, na China, por Pierre Teilhard de Chardin. Quer dizer, a esfera nova na qual mentes e corações convergem numa consciência coletiva de espécie, habitando a única Terra que temos.
Essa biocivilização é viável e está dentro das possibilidades humanas construí-la na observância da ética da Terra, feita de cuidado, de responsabilidade universal, de acolhida de todas as diferenças e do sentimento de habitarmos uma Casa Comum junto com com toda a comunidade terrenal e a comunidade de vida, sob o olhar benevolente do Criador “que ama tudo o que criou e que não odeia nada do que fez porque é o soberano amante da vida” (Sab 11,24-26).
**Sobre o autor: Leonardo Boff escreveu Habitar a Terra: qual o caminho para a fraternidade universal, Vozes, 2022; Como cuidar da Casa comum: pistas para protelar o fim do mundo, Vozes, 2024.