• Tragédia municipal circense

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  • 08/02/2017 12:23

    Eis uma crônica no estilo de uma cena teatral.

    Cenário: Gabinete do prefeito. Época: sempre.

    Mobiliário: todo quebrado; arquivos tombados com gavetas abertas e papéis espalhados pelo chão. Porta central com cadeado e porta dos fundos escancarada para a fuga.

    Personagens: Prefeito e Chefe de Gabinete.

    Voz em gravação – A cena final vai começar. Por favor, desliguem os celulares, se puderem.

    Ação: cena única: o prefeito está na última semana de seu governo já que não conseguira a reeleição. Chama o chefe de gabinete, que ainda perambula pelas salas do poder em contagem regressiva, e não esconde o jogo:

    Prefeito (Autoritário) – Queime! Mande queimar em todos os setores! O próximo prefeito não deve encontrar nada em realização ou encaminhado! Assim ele começará seu governo do zero…

    Chefe de Gabinete – Sim, excelência, mas… e os projetos que estão dando certo e em plena realização com sucesso?

    Prefeito – Principalmente o que está dando certo. Quando retornar, na próxima eleição, eu retomo tudo, como projetos meus. Nenhum vagabundo tem o direito de botar a mão em minhas realizações. Como dizia o presidente do partido: cara que mamãe beijou vagabundo nenhum põe a mão !

    Chefe de Gabinete – Mas é só aqui no Gabinete ou a medida é extensiva às secretarias e todo o resto?

    Prefeito – Extensiva! Extensiva! Gostei do termo; é novo ou já existia antes da reforma ortográfica? O que significa?

    Chefe de Gabinete – Botar fogo na Prefeitura inteira: arquivos e documentos das secretarias, fundações, departamentos… Sumir com tudo !

    Prefeito – Ahn! É isso mesmo o que eu quero.

    Chefe de Gabinete – E como o novo prefeito vai se arranjar no zero? E o povo beneficiado com projetos sociais, culturais, etc?

    Prefeito – Não me interessa o que irá acontecer. Eu quero que o sucessor se arrebente para que eu use sua ruína na próxima campanha e retorne à prefeitura. Entende?

    Chefe de Gabinete – Entendo! O senhor é um tremendo sete-um, O que deseja fazer é baixaria da pior espécie.

    Prefeito – Não me conteste e obedeça! Você ainda é meu secretário!

    Chefe de Gabinete – Sou, sim, mas até 31 de dezembro. A partir de 1º de janeiro eu vou para a secretaria de Transportes. O novo prefeito vai me nomear chefe da fiscalização viária e adjacências…

    Prefeito – O quêêê!!! Traidor descarado! Você trabalhou na campanha dele?

    Chefe de Gabinete – Não, excelência, eu pedi votos para o senhor, mas dizia sempre ao eleitor que numa democracia ele tinha o direito de votar em quem quisesse. E, fique sabendo, que o novo prefeito jogou bola comigo e somos amigos de infância. E, ainda mais, senhor prefeito, eu não posso perder meu cargo em comissão, seja ele qual for, pelo leite das crianças lá de casa.

    Prefeito – Então eu tive um traíra o tempo todo durante meu mandato?

    Chefe de Gabinete – Não, senhor, fui fiel enquanto deu e espero que se o senhor voltar à prefeitura me nomeie para algum cargo. Como o título daquele filme: “la nave vá”…

    Prefeito – Eu acho que sete-um é você. Tá bom, mas você vai queimar?

    Chefe de Gabinete – Vou queimar, sim. Sou um fiel servidor enquanto dure…

    Prefeito – Essa frase é do Vinícius, autor da música “Cabeleira do Zezé”…

    Chefe de Gabinete – Pera aí, prefeito, a “Cabeleira do Zezé” é do João Roberto Kelly.

    Prefeito – É. Deve ser. Mas, mãos à obra. Acaba com o Gabinete e vai para as secretarias com minhas ordens em execução. Vai. Vai.

    Chefe de Gabinete (saindo) – Fui. Após o incêndio, retorno em 1º de janeiro para continuar a vida profissional de doutor em cargo em comissão. Novas ideias, novos tempos. “La nave vá”!

    Prefeito (saindo pela porta dos fundos, apressadamente, tropeçando em tudo) – Também fui! Volto em quatro anos!

    A cena teatral termina em pano rapidíssimo antes que o picadeiro e a lona do circo sejam consumidos pelas chamas.

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