• Todos os gestos do mundo na mostra do fotógrafo Nuno Félix

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  • 28/06/2022 07:03
    Por Antonio Gonçalves Filho / Estadão

    Poeta, psiquiatria e professor da Faculdade de Medicina de Lisboa, Nuno Félix da Costa é também um sensível fotógrafo, capaz de despertar no espectador um gosto pelo mistério em cenas aparentemente banais, como a de quatro garotos brincando numa rua de Fez, Marrocos, ao lado de um personagem obscuro portando um tarbouche na contraluz. Outra cena, no centro de São Paulo, mostra a palavra “justiça” pintada na empena de um prédio contra uma nuvem cúmulo-nimbo a ameaçar a cidade com uma tempestade. Só um poeta poderia associar a palavra “justiça” a uma imagem tenebrosa como essa. E, provando sua competência em ambos os ofícios, Nuno volta a São Paulo para lançar dois livros de literatura e um de fotografia, O Mundo Mesmo (Cepe Editora), do qual foram selecionadas algumas imagens para a exposição que ele abre na Arte 57, galeria de Renato Magalhães Gouvêa Jr.

    Os livros, Breve Manual para Ser Humano e O Mim Impossibilitado do Acontecer, ambos também publicados pela editora Cepe de Pernambuco, serão lançados no dia 9 de julho, às 19h, no Pavilhão de Portugal da 26ª Bienal Internacional do Livro em São Paulo, quando o autor conversa com o professor brasileiro Leonardo Gandolfi. A exposição de fotografia será aberta antes, na quinta, 30, na Arte 57 (Av. Nove de Julho, 5.144).

    As fotos são todas em preto e branco. Nuno não pretende com esse monocromatismo fazer delas um testemunho documental, mas trazer para o espectador uma nova forma de olhar – ou, nas palavras de Hegel, revelar o que é conhecido, mas não reconhecido, justamente por ser bem conhecido. Nuno diz que procurou, no livro, evitar o “típico”. Viajou por diversas cidades de diferentes países para mostrar paisagens que se assemelham, gestos que se repetem, ritos que aproximam culturas díspares. Enfim, não se trata de um livro marcado pela objetividade de um documentarista, mas pela subjetividade de um poeta.

    Já nas primeiras imagens do livro, a associação com o preto e branco dos filmes do húngaro Béla Tarr é quase inevitável. No entanto, captar a passagem do tempo por meio do cinema, como fez Tarr, parece uma tarefa razoável comparada à fixação dessa passagem numa única imagem. A exemplo de Tarr, Nuno acredita que o documento de uma época passa pela abstração – “e o preto e branco é mais abstrato que a foto em cores”, observa Nuno. “Eu não me dou bem com as cores”, justifica o fotógrafo português. Tarr, que abandonou o cinema, também não. Ferrenho crítico do nacionalismo, o húngaro dizia que a principal pergunta que deveríamos fazer a nós mesmos é que moralidade representamos quando construímos um muro contra nossos semelhantes. Nuno pensa de modo semelhante: viajou por todo o planeta para chegar ao título de seu livro, O Mundo Mesmo.

    É possível pensar nas viagens de Robert Frank pelos Estados Unidos e de Cartier-Bresson pela China (ambos fotógrafos humanistas e exímios no preto e branco), mas Nuno, referindo-se aos dois, diz que a própria vida de ambos prova “o esgotamento do documentário” (Frank partiu para a autoficção, Cartier-Bresson se inclinou para o desenho). É possível, admite, perceber as particularidades de cada cultura – e sua exposição traz fotos de países como Ucrânia, Brasil, Rússia, Egito, Índia, China e Espanha, entre outros -, mas o que predomina nas imagens desse seu “discurso visual pós-etnográfico” é a busca de um denominador comum: os meninos que brincam de assalto à mão armada em Bucara, no Usbequistão (foto de 2006) são os mesmos que carregam irmãos menores em Varanasi, na Índia (foto de 2012) ou jogam peladas em Tbilisi, na Geórgia (foto de 2014).

    “Algumas imagens podem ser extraordinárias, mas compõem um discurso que se aproxima de uma collage”, analisa o fotógrafo. “O que fica é o objeto fotografado, e não como documento de uma realidade, que é sempre ponto de partida.” Suas fotos da Ucrânia (de 2010) são fragmentos quase cubistas de uma mesma cultura, registrada um ano antes na Rússia, mas com diferentes modulações. “Era possível perceber que a Ucrânia já estava mais próxima do Ocidente, mas nunca esperávamos as atrocidades cometidas pela Rússia contra seu país vizinho, uma agressão tão incrível a uma cultura tão próxima.”

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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