• Testamento criativo de Jô Soares, ‘Gaslight’ aborda o abuso psicológico

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  • 09/09/2022 08:00
    Por Dirceu Alves Jr., especial para o Estadão / Estadão

    Quem entrar no Teatro Procópio Ferreira a partir desta sexta, 9, encontrará uma enorme teia de aranha, confeccionada com 6 mil metros de cordas náuticas, suspensa sobre as extremidades do palco. A armação de fios, criada pelo cenógrafo Marco Lima, envolve a residência do casal Jack e Bella (interpretado por Giovani Tozi e Erica Montanheiro), personagens enredados em uma convivência abusiva, da qual nenhum dos dois – mas principalmente ela, a vítima – consegue se desvencilhar.

    Escrito em 1938 pelo dramaturgo inglês Patrick Hamilton (1904-1962), o thriller Gaslight, Uma Relação Tóxica renova significados ao longo do tempo e aquece as discussões em torno da violência psicológica capaz de desestabilizar quem a enfrenta. Testamento criativo de Jô Soares (1938-2022), o espetáculo é a última direção assinada pelo múltiplo artista, que morreu em 5 de agosto, ainda na fase inicial dos ensaios. O trabalho, porém, vinha sendo desenvolvido desde 2018 – quando Jô e Tozi assistiram à versão cinematográfica da peça, protagonizada por Ingrid Bergman e Charles Boyer em 1944 – e o diretor teve tempo de criar o conceito da encenação, além de comandar leituras com os intérpretes principais. Neusa Maria Faro, Kéfera Buchmann e Leandro Lima, que completam o elenco, não chegaram a trabalhar presencialmente com Jô, mas receberam as orientações do codiretor Maurício Guilherme, responsável por levantar a montagem no palco no último mês. “Jô começava a dirigir um espetáculo no momento em que fazia a adaptação do texto e, de acordo com essa escrita, já definia o tom dos personagens, o caminho dos atores e idealizava cenários e figurinos”, explica Guilherme.

    Como em um prólogo, o termo gaslight é explicado à plateia na primeira cena, desenvolvida na boca do palco, ainda com as cortinas fechadas. Kéfera Buchmann situa o público na história e define a expressão que designa uma forma de violência psicológica em que as informações são manipuladas por uma das partes até que a outra passe a duvidar da própria sanidade. “Jô dizia que o espectador se desinteressa pelo que não entende, por isso fazia questão de deixar clara qualquer camada menos óbvia”, afirma Guilherme. “Essa é só mais uma prova de um homem refinado que jamais abriu mão da comunicação.”

    Intuição

    Além de protagonista, Giovani Tozi é também produtor em sociedade com Priscila Prade. Os dois colocaram o espetáculo de pé com as próprias economias, porque intuíram que o projeto não poderia ser adiado ou ficar na dependência de patrocínio. “Devíamos isso ao Jô e o envolvimento dele no processo foi intenso. Dois dias antes de ser hospitalizado, em meados de julho, estava marcando reuniões”, conta Tozi, que foi dirigido pelo artista em outras duas peças.

    Em mais de uma década de parceria com o diretor, Erica Montanheiro alcançou desempenhos notáveis nas comédias O Libertino (2011) e Histeria (2016), que já tratava sutilmente da violência sexual contra a mulher. “Nunca tive receio de propor ideias ou discordar dele porque, se o Jô achava minhas propostas ruins, nós dois acabávamos rindo juntos.” Esse ouvido aberto para o mundo, segundo a atriz, era uma qualidade do artista e ele sabia que estava na hora de conectar as questões de Gaslight às reivindicações feministas. “Jô reforçava que não se tratava de uma comédia e precisávamos usar toda a carga dramática para abordar o tema difícil e recorrente do abuso psicológico”, completa Erica.

    A atriz e influenciadora digital Kéfera Buchmann, em sua segunda incursão teatral, representa Nancy, a empregada de personalidade forte, um contraponto à submissão de Bella. Ela ganhou o papel depois de se oferecer para um teste com os produtores. Jô se lembrou da menina carismática que havia entrevistado na televisão em 2015 e confirmou a escalação. Com mais de 15 milhões de seguidores, Kéfera não sabe se levará parte do público do Instagram ao teatro, mas acredita que pode estimular o debate sobre relações tóxicas. “A gente precisa entender o que aconteceu com o mundo para naturalizar o abuso e, se as pessoas deixarem um pouco de lado os seus celulares, passando uma hora e meia no teatro, já pode ser um começo.”

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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