Tela de Tarsila vai a leilão por R$ 47 milhões
Após atingir a astronômica cotação de US$ 20 milhões (mais de R$ 100 milhões) no ano passado, quando o Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) adquiriu a tela A Lua (1928) para o seu acervo, a pintora Tarsila do Amaral (1886-1973) deve bater outro recorde, desta vez no Brasil. Nunca houve no País nenhuma obra que tenha alcançado o valor de A Lua, mas o leilão de uma das telas modernistas da pintora, Caipirinha, programado para o dia 17 na Bolsa de Arte, em São Paulo, pode fazer a cotação da pintora chegar ao mesmo nível. O lance mínimo para a tela, uma das primeiras obras modernistas de Tarsila, pintada em sua segunda viagem a Paris, em 1923, será de R$ 47 milhões, recorde para um pintor brasileiro.
Para se ter uma ideia, os dois recordes de vendas públicas no país, segundo destaca Jones Bergamin, da Bolsa de Arte, fiel depositária da obra, foram Superfície Modulada nº. 4, de Lygia Clark, que alcançou R$ 5,3 milhões em 2013, e Vaso de Flores, de Guignard, arrematada dois anos depois por R$ 5,7 milhões em valores da época.
O MoMA, segundo Bergamin, já mostrou interesse em Caipirinha, cuja importância histórica é enorme. A pintura estará disponível para visitação pública a partir desta terça-feira (8), na Bolsa de Arte (Rua Rio Preto, 63, São Paulo). A tela, registrada no catálogo raisonné de Tarsila, começou a nascer em abril de 1923, quando a pintora escreveu uma carta a seus pais comunicando a criação de uma tela com reminiscências de sua infância na fazenda. “Quero, na arte, ser a caipirinha de São Bernardo, brincando com bonecas do mato, como no último quadro que estou pintando”, carta essa reproduzida no livro que Aracy Amaral publicou sobre a artista em 1975.
Tarsilinha, a sobrinha de Tarsila, lembra que a venda da tela A Lua para o MoMA foi importante por projetar internacionalmente o nome de Tarsila, mas lamenta que nenhum museu brasileiro esteja capitalizado para comprar Caipirinha, pintura poucas vezes vista em exposições – o ex-proprietário da tela, o empresário Salin Taufi Schahin, a mantinha longe dos olhos do público. Em julho deste ano, a Justiça determinou que o quadro fosse leiloado. Schahin, acionista de uma empresa petrolífera que faliu depois que a Petrobrás começou a ser investigada por não apresentar balanços, comprou a obra nos anos 1990.
A primeira proprietária da tela foi a mecenas dos modernistas Olivia Guedes Penteado, que reformou uma antiga cocheira em sua casa no centro da capital paulista, transformando-a num grande salão para abrigar as obras dos modernistas. A Caipirinha foi escolhida pessoalmente por Tarsila para figurar no pavilhão. Ela a considerava uma de suas melhores pinturas do período – e são raras as obras dos anos 1920 da pintora que podem ser encontradas no mercado, o que explica o preço estratosférico projetado para a tela (um óleo de 60 cm x 81 cm) pintada um ano depois da Semana de Arte Moderna de 1922.
Sob a guarda inicial de dona Olivia, Caipirinha foi herdada, após sua morte, por sua filha Carolina Penteado da Silva Telles. “Hoje, no Brasil, existem pelo menos dez grandes colecionadores que não têm uma Tarsila de importância histórica comparável à tela”, observa Jones Bergamin, da Bolsa de Arte.
A pintura, realizada ainda sob a influência do cubista Léger, já respondia ao chamado de Mário de Andrade mesmo antes de o escritor escrever uma carta à pintora, em novembro de 1923, que dizia: “Abandona o Gris e o Lhote, empresários de criticismos decrépitos e de estetas decadentistas! Abandona Paris, Tarsila, vem para a mata-virgem, onde não há arte negra, onde não há também arroios gentis (…). Disso é que o mundo, a arte, o Brasil e minha queridíssima Tarsila precisam.” Tarsila atendeu ao pedido e regressou um mês depois, em dezembro de 1923, desembarcando no Rio e dando entrevistas sobre a importância do cubismo, mas revelando que esperava aprender, no interior, “com os que ainda não foram corrompidos pelas academias”.
A Caipirinha representa, assim, uma afirmação da brasilidade de Tarsila que, filha de fazendeiros, estava com o namorado Oswald de Andrade em Paris estudando pintura e comprando vestidos do costureiro Paul Poiret (1870-1944), citado pelo escritor modernista no poema Atelier (1925), em que ele destaca tanto a face cosmopolita da pintora como seu lado interiorano, de “caipirinha”.
O marco inicial da escalada internacional de Tarsila aconteceu em 1995, quando o empresário argentino Eduardo Costantini comprou a tela Abaporu (1928) por US$ 1,3 milhão (cerca de US$ 2,2 milhões em valores atuais) durante um leilão em Nova York. A obra, ícone do Movimento Antropofágico, integra o acervo do Malba – Museu de Arte Latina de Buenos Aires, do qual se tornou a principal atração. Ela foi vista pela última vez no Brasil na retrospectiva de Tarsila no Masp em 2019 (Tarsila Popular), que levou 400 mil pessoas ao museu paulista.