STF permite que magistrados julguem processos de clientes de seus parentes
O Supremo Tribunal Federal (STF) formou maioria para flexibilizar regras de impedimento de juízes e liberar magistrados para julgar casos em que as partes sejam clientes de escritórios de cônjuges, parceiros e parentes. Até a noite de ontem o placar estava em 6 a 3 no plenário virtual. A decisão beneficia os próprios ministros do STF. Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes são casados com advogadas. Já os ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Edson Fachin, por exemplo, são pais de advogados.
A restrição foi criada na reforma do Código de Processo Civil para garantir a imparcialidade nos julgamentos e valia inclusive para processos patrocinados por outras bancas de advogados. Isso quer dizer que, se o cliente tivesse alguma causa no escritório do parente do juiz, o magistrado estaria impedido de julgar qualquer ação dele.
O ministro Gilmar Mendes, decano do STF, apresentou o voto predominante. Ele defendeu que a restrição à atuação dos magistrados viola os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade.
O argumento é que não dá para exigir que os juízes conheçam a carteira de clientes dos escritórios de seus parentes. “O fato é que a lei simplesmente previu a causa de impedimento, sem dar ao juiz o poder ou os meios para pesquisar a carteira de clientes do escritório de seu familiar”, criticou.
O julgamento estava em curso no plenário virtual do STF. Nesta modalidade, não há debate, reunião dos ministros ou transmissão pela TV Justiça. Os votos são registrados em uma plataforma online. A votação termina na segunda.
‘INTEGRIDADE’
O economista Bruno Brandão, diretor executivo da Transparência Internacional – Brasil, classificou como “lamentável” a decisão do STF. Na avaliação do especialista, a regra de impedimento contribuía para “aprimorar a integridade” da Justiça. “A decisão produz uma percepção na sociedade ainda pior por ter sido tomada por juízes cujas esposas e filhos advogados são sócios de escritórios diretamente afetados.”
Brandão discorda do argumento de que os juízes não têm instrumentos para controlar se estão julgando causas de clientes de parentes. “O argumento de que a medida é inexequível é altamente questionável, considerando as possibilidades atuais dos processos digitais. Empresas privadas fazem, há anos, esse tipo de checagem de vínculos societários, de maneira automatizada, para detectar riscos de compliance.”
O Código de Processo Civil determina que os magistrados devem se declarar impedidos para o julgamento dos clientes das bancas de seus maridos, esposas e parentes de até terceiro grau. A regra de impedimento se aplica mesmo para processos que estiverem a cargo de outros escritórios, ou seja, o juiz não podia analisar nenhuma ação de quem tivesse contratado serviços de advocacia com bancas de seus familiares.
ASSOCIAÇÃO
A ação em julgamento no STF é movida pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB). A entidade de classe afirma que os juízes precisariam exigir dos parentes uma lista diária da relação de seus clientes e poderiam ser penalizados por “informações que estão com terceiros”.
“O dispositivo ora impugnado se presta apenas para enxovalhar alguns magistrados, pois quando há o interesse de atingi-los ou maculá-los, certamente para constrangê-lo em razão de já ter proferido decisão(ões) contrária(s) aos seus eventuais detratores, esses se prestam a fazer pesquisas extra-autos para obter a informação necessária a apontar o impedimento que o magistrado desconhece”, argumentou a AMB ao dar entrada no processo em 2018.
Ao votar para derrubar a regra, Gilmar também argumentou que, na prática, a restrição é “inviável”, por causa da rotatividade entre os escritórios de advocacia. “Sociedades de advogados são formadas, desmembradas e dissolvidas. Advogados empregados são contratados e demitidos”, afirmou. “Para observar a regra de impedimento, não basta verificar o nome do advogado constante da atuação. É indispensável verificar as peças do processo, checando o papel timbrado no qual são veiculadas as petições.”
O voto afirma ainda que a distribuição dos processos é aleatória e que o impedimento deve ser “excepcional”. “O trabalho do juiz é julgar. Aceitar que as partes usem a recusa como meio para manchar a reputação do julgador é diminuir não só a pessoa do juiz, mas a imagem do Poder Judiciário”, acrescentou.
O decano foi acompanhado por Cristiano Zanin, Luiz Fux, Dias Toffoli, Kassio Nunes Marques e Alexandre de Moraes.
Em seu voto, Zanin afirmou que o controle das partes do processo é “praticamente impossível” e que a regra poderia prejudicar parentes de magistrados. “Tanto os clientes quanto os advogados não são obrigados a permanecer no mesmo escritório. É a regra da iniciativa privada. Os vínculos se alteram tanto entre os advogados e os escritórios como entre os escritórios e os seus clientes”, defendeu.
O ministro Edson Fachin, relator do processo, votou para manter a regra de impedimento. Ele defendeu que ela foi criada para “garantir um julgamento justo e imparcial”. “Ainda que em alguns casos possa ser difícil identificar a lista de clientes do escritório de advocacia, a regra prevista no Código de Processo Civil está longe de ser de impossível cumprimento”, rebateu. Ele foi seguido por Rosa Weber e Luís Roberto Barroso.
CÓDIGO
Base da mudança de entendimento, a reforma do Código de Processo Civil (CPC) ocorreu em 2015. O rascunho que deu origem ao novo CPC foi elaborado por uma comissão de juristas que concluiu os trabalhos cerca de cinco anos antes. O coordenador da equipe está hoje no STF e participa do julgamento em curso: o ministro Luiz Fux, que agora votou contra o impedimento.
Quando começou a trabalhar na reforma, Fux era ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ele entregou pessoalmente o anteprojeto da reforma no Senado, onde o texto começou a ser votado. A versão original do projeto não previa a regra de impedimento que hoje vigora no texto. A norma proposta pela comissão coordenada por Fux era mais modesta: os juízes só não poderiam despachar em ações patrocinadas por escritórios de seus familiares, mesmo que os parentes não estivessem diretamente envolvidos no caso.
O texto ganhou uma versão ainda mais restritiva a partir de um substitutivo. O artigo 144 passou a prever que o juiz não pode atuar em processos “em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”. Regra agora flexibilizada.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.