• Springsteen e Obama refletem sobre o valor da arte na reconstrução de um país

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  • 25/10/2021 17:03
    Por Julio Maria / Estadão

    Algo de poderoso se impõe quando Barack Obama e Bruce Springsteen começam a falar. Eles unem em suas figuras dois Estados Unidos grandes ao se colocarem como filhos das contradições de um país que vê seu maior orgulho, a potência erguida pela diversidade, explodir pelos ares pesados do extremismo. Suas falas trazem críticas: “A ideia sobre sermos bem-sucedidos mudou e isso se reflete em nossa vida política. É o que explica por que alguém como Donald Trump se elegeu. Na cabeça de muita gente, ele é a imagem do sucesso. Tudo é folheado a ouro. Você é dono do aviãozão, você tem um prédio com seu nome e sai por aí demitindo todo mundo”, diz Obama a Bruce. E autocrítica: “Temos uma grande narrativa: a história que venho contando a vida inteira, a história à qual você (Obama) dedicou sua vida. Mas é preciso que haja ouvidos dispostos a ouvir. Quais são as condições para que as pessoas escutem e acreditem que isso é verdade?”, diz Bruce a Obama.

    Conversas sobre origens, família, música e, sobretudo, dívidas sociais e raciais foram realizadas primeiro para um podcast do Spotify chamado Renegades. Agora, expandidas, elas estão reunidas em um livro com lançamento mundial – no Brasil, pela Companhia das Letras – previsto para o dia 26. A reportagem do Estadão foi a única do Brasil presente na entrevista em que eles receberam, em uma sala de Zoom, apenas seis jornalistas do mundo.

    O livro chega a um ponto crucial quando Obama faz uma avaliação de sua experiência à frente da Casa Branca como defensor de políticas inclusivas que se depara com uma reação avassaladora. “A minha avaliação é de que, do ponto de vista prático, isso (justiça social) era inalcançável. Se não conseguimos nem que este país proporcionasse educação para as crianças pobres das cidades grandes… O que eu vi durante a presidência foi ressentimento dos brancos e conversas sobre pobres que não mereciam ajuda nenhuma – tudo isso significava que qualquer programa relevante de reparação era não somente fadado ao fracasso em termos políticos, mas talvez até contraproducente.”

    “Talvez até contraproducente”. Esta não é uma frase qualquer quando é Obama quem a diz. A saída para uma maior governabilidade, então, seria não mais focar o discurso em projetos para desassistidos? “É bastante compreensível que pessoas brancas da classe trabalhadora, brancos da classe média, gente que está tendo dificuldade em pagar suas contas e honrar seus empréstimos estudantis, gente que não tem plano de saúde e sente que o governo as deixou na mão, não ficariam felizes com um programa substancial destinado a lidar com o passado sem cuidar do futuro deles.” Bruce intervém: “Você está dizendo que vivemos num país onde isso pode ser feito para banqueiros de Wall Street, mas não para uma parte da população que vem sofrendo há tanto tempo?”. Obama: “Estou dizendo que os ressentimentos, os medos, os estereótipos e as barreiras tribais que dividem este país permanecem muito profundas. Por isso, minha avaliação tem sido a de que a melhor maneira de proporcionar programas e abrir oportunidades para o sucesso e a igualdade dos afro-americanos consiste em expor a coisa da seguinte forma: ‘Vamos nos certificar de que todas as crianças recebam boa educação. Vamos nos assegurar de que todas as pessoas recebam assistência médica…’ Ao formular a questão em termos genéricos, em vez de beneficiar especificamente um grupo racial prejudicado no passado, temos mais chances de conquistarmos uma maioria”.

    A reportagem partiu deste ponto para fazer uma mesma pergunta aos dois, seguindo as rígidas regras da assessoria de imprensa internacional. Uma vez que o ex-presidente diz ainda que “o ativista tem um papel diferente do político, assim como o escritor de ficção e o poeta têm papéis diferentes de um jornalista”, qual seria a saída a um mundo em que até artistas andam se desvencilhando de falas ativistas por entenderem que suas plateias são formadas, como um país, por forças “do bem” e “do mal”? Os dias não exigem que todos os mediadores – políticos, jornalistas e artistas – sejamos, em alguma medida, ativistas? Ou só haverá paz de fato quando voltarmos a dialogar com todos, minorias e maiorias?

    Bruce fala primeiro: “Eu consigo entender um artista que não faça política, e não acho que seja necessário fazê-la. Eu mesmo não me considero um ativista. O rock and roll é a música da liberdade. Quando cheguei aos 30 anos e olhei para Woody Guthrie e Bob Dylan, tentei achar uma forma de trazer um pouco de ativismo, mas acho que a coisa mais fundamental que fiz foi contar histórias de gente. Se eu tocar aqui na América, o público não será todo democrata ou republicano. Então, meu trabalho é mostrar os valores em comum que eles compartilham e fazê-los levar esses valores para casa”.

    Obama começa a responder, a princípio, não como um ser político. Seria interessante saber mais sobre sua premissa de que, em busca de uma base de apoiadores maior, melhor seria propor políticas públicas sem a aura sacro ativista que ainda o reveste, mas ele primeiro faz uma piada tocando uma guitarra imaginária: “Eu toco muito mal, não sei se posso responder isso”, riem ele e Bruce, para a derrota de um perguntador que, controlado pelas regras de mediação, não tem instrumentos para interferir e recolocá-lo na rota da questão.

    Por outro lado, o que viria aos poucos, no crescente de sua resposta, não seria nada mal, mesmo com Obama sentado na poltrona dos espectadores: “Quero dizer que, como consumidor de arte, penso que um artista tem a obrigação de dizer a sua verdade. E quanto melhor esse artista for, mais sua verdade conseguirá alcançar as pessoas de forma profunda. É isso que pode mudar as atitudes e as relações com o mundo. E, sim, isso é um ato político”, diz, antes de se ajeitar e prosseguir.

    As paredes da Casa Branca nunca trepidaram tanto quanto no período em que hospedaram a família Obama. O livro Renegados lembra de artistas estupendos que estiveram no palco de sua sala de concertos, mas que passariam longe do palácio presidencial assim que chegasse um novo inquilino, em 2017. Paul McCartney, Aretha Franklin, Stevie Wonder, Smokey Robinson, Bob Dylan, Joan Baez, Diana Krall, Sheryl Crow, Arturo Sandoval, Aerosmith e o próprio Bruce, mais de uma vez. Afinal, música é algo que nunca parou de soar na cabeça de Obama desde o primeiro álbum que ele comprou com o próprio dinheiro: Talking Book, de Stevie Wonder – e ninguém que ouve Stevie Wonder com 15 anos pode dar muito errado. Em resposta à pergunta de um jornalista holandês, sobre o período mais feliz de sua vida, veja o que Obama diz: “A única coisa que posso ter certeza é de que, no meu leito de morte, lembrarei não dos discursos ou eleições que ganhei, mas de segurar a mão das minhas filhas para andarmos no parque ou de sentar numa noite calma para ouvi-las rir. A vida valeu a pena porque vivi isso”.

    É engraçado ouvir Bruce falar com a arquitetura patriótica de um político e Obama com a devoção apaixonada de um músico. “Muita gente foi deixada para trás e, se não conseguirmos incluí-los no cenário da América, será uma receita para mais desafeto e confusão”, diz Bruce a um jornalista da América Latina, sempre com um tom mais salve a América do que Obama, que segue em sua resposta ao Estadão: “Acho que o artista tem de possuir a habilidade de expandir o entendimento entre as pessoas. Se eu sou um homem que viveu em uma comunidade fechada, conservadora, e vejo um filme, ouço uma canção ou leio um livro que mostre a história de uma pessoa gay, por exemplo, eu vou entendê-la, apesar de a igreja me ensinar que esta pessoa está errada. Se um artista consegue fazer o meu coração se abrir para a dor de um desconhecido, isso muda minha atuação poderosamente. É aí que o artista é mais forte”.

    Seria tal poder o que fez Obama e Bruce entenderem, muito meninos, o que era respeito? “Hey, Bruce, quais as melhores músicas de protesto para você?”, pergunta Obama. Bruce cita Fight the Power, do Public Enemy, e Anarchy in the UK e God Save the Queen, dos Sex Pistols. Obama fala de Maggie’s Farm, de Bob Dylan, A Change Is Gonna Come, com Sam Cooke, e Strange Fruit, com Billie Holiday. “Bum! Vai para o topo”, diz Bruce. Mas Obama tem outra: “Sabe qual é a grande música de protesto que as pessoas não entendem como música de protesto? Respect, com Aretha Franklin. Ela está dizendo para os homens: ‘Tomem tento!'”.

    E então, Obama, mesmo uma nação com um exército de ativistas pode não se realizar como nação se as pessoas forem privadas de experiências culturais mais profundas? A pergunta que não pôde ser feita parece respondida bem ao final do surpreendente solo de Barack Obama, um político que diz tocar guitarra tão mal: “A arte nos torna suscetíveis a criar uma cultura e um clima político em que as pessoas possam ver a complexidade das outras e não as colocar em caixas como se fossem diferentes de nós. É aí que começam os confrontos de um povo.”

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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