• “Sonhecídios”

  • Continua após o anúncio
  • Continua após o anúncio
  • 09/10/2022 08:00
    Por Ataualpa Filho

    Às vezes o acaso nos surpreende, porque nos obriga a fugir do previsível, do previamente programado. O imprevisto tende a nos colocar diante de situações que exigem resiliências, flexibilidades, além de testar a nossa capacidade de buscar soluções em momentos inesperados, que são portas para o novo. Surgem como desafios. Desafiar-se consiste em um exercício que aprimora as nossas habilidades. A força de vontade está sempre presente nas superações. Os piores obstáculos são aqueles que despontam dentro de nós. Por isso que a fé, a esperança, os sonhos alicerçam a caminhada em busca dos nossos objetivos…

    “Navegar é preciso, viver não é preciso” (“navigare necesse, vivere non est necesse”). Essa constatação de heroicos navegantes, poeticamente explorada por Fernando Pessoa, expõe que o “mar da vida” carrega as inconstâncias em ondas que espelham as nossas limitações, as contingências que remetem ao “eterno recomeço”, produto da nossa efemeridade.

    “O senhor… mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão.” Essa verdade explícita no livro “Grande Sertão: Veredas” de João Guimarães Rosa traduz a nossa incompletude. O processo de aprendizagem é contínuo.  A frase “vivendo e aprendendo”, que já está em domínio público, respalda a definição do mundo como uma escola. “A beleza de ser um eterno aprendiz”, como afirmara Gonzaguinha, consiste nesta busca da felicidade. E, para isso, é preciso descristalizar dúvidas e certezas. Permitir mudanças para crescer interiormente. O tempo é mestre nas transformações… 

    Não perco as oportunidades de aprender. Na quarta-feira passada (05/10), tive belas lições de vida. Aprendi muito. Fui convidado para participar de um dos projetos do Curso de Letras da Universidade Católica de Petrópolis (UCP) denominado “Expoentes da Literatura”, no qual houve o lançamento do livro “Quatro Estações” de Christiane Michelin, tendo a mediação da professora Aline de Almeida Rodrigues. 

    Recebi a incumbência de fazer a apresentação do livro. Como participei do processo editorial, sentia-me bastante confiante para falar dele. Fiz um roteiro em PowerPoint com poemas da autora. Pretendia falar da poesia com alma feminina. Selecionei também poemas de Cecília Meireles, Adélia Prato, Elisa Lucinda, Ana Cristina Cesar. E assim, navegar pela poética da sensibilidade que as mulheres tecem em versos. A minha proposta consistia em falar da mulher nos diversos e adversos contextos sociais.

    Fui para o auditório III do Campus Dom Cintra confiante por causa das releituras que já havia feito da obra que seria colocada em debate. Mas pelo acolhimento que tive desde a portaria até a recepção por membros gestores da universidade, a confiança foi se dissolvendo. Quando me deparei com a atenção das pessoas na plateia, veio uma instabilidade emocional pelo medo de decepcionar tão seleto público. 

    O que estava programado fugiu por uma emoção que me deu uma segurança para falar da minha luta com a linguagem desde a infância até os dias de hoje. Como exemplo, citei o título deste texto que nasceu de um erro de digitação. Fui escrever a palavra “conhecida”, mas, por um lapso, troquei a primeira letra, surgiu: “sonhecida”. Fato este que me levou a pensar em “sonhecídios”. Pela dislexia, muitas palavras saltam involuntariamente. Porém nos permitem uma reflexão que vai além do signo linguístico. Vi que é possível explorá-la poeticamente. 

    A partir do vocábulo “sonhecídios”, perguntei aos presentes se havia alguém com algum sonho “suicidado”. Muitos levantaram a mão. Todos sabem que, nos casos de suicídio, o que primeiro morre são os sonhos, as esperanças e a fé.

    A fé, os sonhos, as esperanças oxigenam o nosso viver. Concentram a energia vital para acreditar no amanhã. Poesia salva vida. Quando não para quedas, ajuda a levantar. 

    Venho aqui publicamente agradecer o convite feito pela UCP para falar de “Quatro Estações” da minha fraterna amiga Christiane Michelin. Quero agradecer também aos que compareceram a confiança que recebi para falar das estações de nossas vidas a partir da poesia.  

    Últimas