• Simon Schwartzman e o “golpe” da Independência

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  • 03/12/2022 08:00
    Por Gastão Reis

    Simon Schwartzman é um sociólogo brasileiro respeitado, aqui e lá fora, por várias obras importantes publicadas. Recentemente, adquiri dele o livro “Falso Mineiro – Memórias da política, ciência, educação e sociedade”, Editora Real, 2021. No livro, ele nos relata suas experiências e decepções com a educação no Brasil. Faz a crítica pertinente ao pensamento ideológico que, em boa medida, reflete o primitivo “nós contra eles” sem espaço para o debate civilizado. Ou seja, importa mais ganhar a discussão do que aprender um com o outro debatedor no processo. É neste espírito que escrevo esta réplica ao artigo publicado por ele no Estadão, em 9.9.2022, intitulado “O Golpe da Independência”. 

    Sempre me espanta a frequência com que enxergamos golpes onde não aconteceram. Exemplo histórico marcante é o chamado Golpe da Maioridade de Dom Pedro II, em 1840. O povo queria a maioridade dele, os conservadores também, depois os liberais, a imprensa da época, idem, mas a constituição de 1824 rezava que ele teria que ter 18 anos completos, e estava com 15 incompletos. A definição clássica de golpe é sempre algo fechado em que a população é a última a saber. O que ocorreu na época foi o oposto. Por que então golpe? Formalismo? Aqui se insere minha primeira discordância com a visão mal-informada do articulista.

    No primeiro parágrafo, Schwartzman nos fala da exposição internacional de 1922 comemorativa dos 100 anos de independência e da Semana de Arte Moderna, em que pintores e escritores buscavam mostrar o Brasil como ele era e falava, livre das amarras da pintura clássica e do português castiço das elites educadas em Coimbra. Lembrei-me, então, das várias reformas ortográficas por que passamos, coisa que ingleses e franceses jamais fizeram, em boa medida, porque forma não determina conteúdo, dando preferência a manter a ortografia  complicada em que suas línguas são escritas até hoje. 

    Ele nos fala ainda do golpe de Estado dado pela Família Real portuguesa contra a revolução liberal portuguesa, que limitava seus poderes, ao colocar a coroa na cabeça do herdeiro D. Pedro, nosso primeiro imperador. Na época, constitucionalistas ingleses elogiaram nossa constituição de 1824, que foi modelo para a portuguesa, implantada logo após a vitória de D. Pedro I, IV de Portugal, sobre seu irmão absolutista Dom Miguel, que usurpara o trono de sua filha. Este, sim, era absolutista, e D. Pedro I lutou contra ele para que Portugal se tornasse uma monarquia constitucional. Onde o golpe, dado que houve grande participação popular em todo o processo de impedir a volta do absolutismo com D. Miguel?

    A chefia de Estado como um quarto poder, separada da de governo, é comum ainda hoje em países parlamentaristas. Claro que sem a mesma gama de poderes enfeixados no poder moderador estabelecido em 1824, mas, na prá-tica, o princípio da separação dos poderes foi mantido. Afirmar que os poderes são harmônicos e independentes é uma contradição em termos. A atual constituição portuguesa estabelece que os poderes são interdependentes. A chefia de Estado é separada da de governo, como quarto poder, de certa forma, acima dos outros poderes, para poder entrar em ação nas crises políticas.

    Mais adiante, o autor nos fala do “bicentenário da independência que quase ninguém comemora, em que os fantasmas do autoritarismo e da violência política voltam a assombrar”. Mas não faz distinção entre o período do Império e da república, como se fosse tudo a mesma coisa. Afinal, manter a liberdade de imprensa desde o início do Império, em 1822, até seu ocaso, em 1889, foi obra grandiosa, um longo período que a república não conseguiu suplantar até hoje. E ainda ter um orçamento impositivo que respeitava o dinheiro público.

    Menciona a seguir os três pilares centrais de um Estado moderno: (i) um governo organizado, capaz de utilizar bem recursos técnicos, financeiros e militares; (ii) cidadãos dotados de direitos civis, políticos e sociais; e (iii) um território definido com fronteiras mantidas e definidas pelo Estado e seus cidadãos. Ato contínuo, Schwartzman nos informa que o Brasil independente herdou um imenso e desconhecido território; um Estado patrimonial organizado para cobrar impostos e explorar riquezas; e uma população formada por negros escravizados, indígenas, brancos e mestiços empobrecidos e analfabetos, onde revela desconhecer as últimas pesquisas sobre os tempos coloniais e do Império.   

    No final do período colonial, as estimativas de renda real per capita nos colocavam no mesmo nível dos EUA. Na verdade, foram as forças de mercado a pleno vapor que deram o tom do dinamismo do período colonial. A imensidão do território impedia, na prática, o controle da metrópole portuguesa sobre a economia, ponto central em obras como a do marxista Caio Prado Júnior e a de Oliveira Vianna, monarquista. Para eles, éramos apenas uma economia agrário-exportadora a serviço do capitalismo internacional, ignorando o dinamismo interno dos 85% do PIB direcionados para o mercado nacional. A obra bem documentada da historiadora americana Rae Jean Dell Flory sobre o período colonial intermediário (1680-1725) confirma o fato, ou seja, a importância e vigor do mercado interno.  

    Mas o golpe mais duro na narrativa da historiografia corrente sobre a estagnação do nosso PIB real per capita no século XIX veio da pesquisa recém-publicada pelos economistas Edmar Bacha, G. A. Tombolo e F. R. Versiani em que demonstram que ele cresceu cerca de 0,9% ao ano ao longo do Império, acompanhando o que acontecia no resto do mundo, exceto nos EUA, cujo crescimento extraordinário foi um caso único.

    Faltou ao autor separar o que ocorreu até 1889 e o que se deu depois com o golpe militar que proclamou a dita república. A perda de rumo teve início a partir do fatídico 15 de Novembro em que se jogou no lixo a moldura político-institucional que nos garantiu estabilidade e desenvolvimento sustentado. 

    (*) Link para o meu vídeo O NASCIMENTO DE PORTUGAL E O NOSSO

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