• Série islandesa Katla une ciência e folclore

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  • 20/07/2021 08:00
    Por Rodrigo Petronio, especial para o Estadão / Estadão

    O espectador e o leitor brasileiros quase sempre se lembram da Islândia por meio de alguns poucos ícones: as coleções de versos conhecidos como kenningar, cultuados pelo escritor argentino Jorge Luis Borges, o poema épico Edda (século 13) e a cantora Björk. Uma nova visão da Islândia se torna mais acessível aos espectadores de mais de 160 países.

    Em 17 de junho de 2021, foi ao ar Katla, primeira série islandesa com produção original da Netflix. Baltasar Kormákur assina a direção e divide a cocriação com o escritor e produtor Sigurjón Kjartansson. O excelente roteiro é assinado por Davíð Már Stefánsson e Lilja Sigurðardóttir, e conta com colaborações dos criadores.

    Katla é um vulcão situado no sul da Islândia cujas erupções ocorrem em intervalos de 50 a 80 anos. É coberto parcialmente pela geleira Mýrdalsjökull e se situa a leste da geleira de Eyjafjallajökull. O povoado mais próximo se encontra ao norte e se chama Vík í Mýrdal.

    Na série, Katla entrou em erupção e Vík precisou ser evacuado. Em meio a um oceano de cinzas, restam apenas alguns resignados. Um evento agrava a situação: o aparecimento de uma estranha nua, coberta de cinzas, que se identifica como Gunhild (Aliette Opheim).

    A protagonista Gríma, interpretada pela artista e cantora Guðrún Ýr Eyfjörð, torna-se uma das principais investigadoras dos enigmas que passam a emergir no povoado. Por quê? Porque sua irmã Ása (Íris Tanja Flygenring), morta há um ano, reaparece nas mesmas condições. A infância das irmãs, marcada pelo suicídio da mãe, é representada em flashbacks respectivamente pelas atrizes Agata Árnadóttir e Kolfinna Orradóttir.

    Além do abalo produzido por essa “ressurreição”, o mecânico Þór (lê-se Thor, interpretado por Ingvar Sigurdsson), pai de Gríma e Ása, ainda precisa se haver com dois fantasmas do passado, ambos ligados à jovem Gunhild e a uma personagem que vem da Suécia para reencontrá-lo. Ela também se chama Gunhild, e é mãe do jovem Björn (Valter Skarsgård).

    As investigações são lideradas pelo geólogo Darri (Björn Thors). O delegado Gísli (Þorsteinn Bachmann), envolvido em dramas pessoais com a esposa Magnea (Sólveig Arnarsdóttir), acaba sendo mais um antagonista do povoado do que um aliado nas elucidações. O espectador deve dar atenção especial a Bergrún (Guðrún Gísladóttir). Depois de viajar o mundo, a dona do hotel Vík se dedica a rituais arcaicos. É um ponto cego da narrativa. Tem uma função oracular (fornece pistas sobre os enigmas).

    Uma das prioridades dos gigantes do streaming tem sido o multiculturalismo: produções inspiradas em narrativas, personagens e culturas autóctones de cada país. Nesse sentido, Katla segue na linha de sucessos recentes como Cidade Invisível (2020), série criada por Carlos Saldanha a partir do folclore brasileiro.

    A ideia governante (Robert McKee) e o mito (Northrop Frye), orientadores de Katla, estão entre o folclore e a ciência. Chamam-se changelings, entidades da cultura islandesa. Representam o mitema (Lévi-Strauss) mais amplo das “crianças trocadas”, presentes nos contos de fadas e em outras culturas. Segundo a crença, as crianças de fadas ou de trolls (desestabilizadores) são trocadas por crianças humanas de fisionomia idêntica.

    Jón Árnason (1819-1888), escritor e diretor do Museu Islandês de Reykjavik, foi um dos primeiros compiladores desses contos nos dois volumes de Lendas Islandesas (1862, 1864). Tanto ele quanto o folclorista norte-americano Dee Ashliman ressaltam um aspecto dos changelings: sua personalidade não muda. Esta e outras características desses duplos (Doppelgänger) são destacadas na série, sobretudo por Bergrún.

    Contudo, o folclore adquire mais complexidade quando unido à ciência. Darri descobre que as entidades são “fabricadas” por um elemento (ou uma inteligência) extraterrestre ativado pelas erupções. O meio-fio entre natural e sobrenatural, entre crença e ciência, entre o vulcão Katla e o cosmos se esgarça e se torna cada vez mais tênue.

    Um dos motivos de maior debate entre os fãs que já se movimentam na internet diz respeito ao fim. A “troca” relativa de Gríma e o “jogo” que esta estabelece com seu changeling fecham de modo misterioso a primeira temporada.

    Embora a segunda temporada ainda não tenha sido confirmada pela Netflix, este fim indica que a orientação deve ser um embaralhamento cada vez maior entre as almas-corpos dos humanos-changelings. Se Katla apostar nesse caminho de tensão entre ciência e mito, o espectador pode esperar não apenas pela segunda, mas por algumas temporadas de uma narrativa audiovisual de alta qualidade.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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