• Série Argentina ‘Vosso Reino’ aborda o uso político da religião

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  • 06/10/2021 09:00
    Por Luiz Zanin Oricchio / Estadão

    “O velho mundo agoniza, um novo mundo tarda a nascer, e nesse claro-escuro irrompem os monstros.” A frase do filósofo italiano Antonio Gramsci (1891-1937), besta-fera dos seguidores de Olavo de Carvalho, serve de epígrafe à série argentina Vosso Reino, disponível na Netflix.

    No lusco-fusco atual, em que surgem os monstros da extrema direita e do moralismo tacanho, a série, em sua primeira temporada, narra a ascensão de um pastor evangélico à presidência do país depois que o candidato principal é esfaqueado por uma pessoa aparentemente insana.

    Dirigida e escrita pelo cineasta Marcelo Piñeyro (Tango Feroz, Plata Quemada, O Método, Kamchatka), em parceria com Claudia Piñeiro, a série conta com elenco estelar. Diego Peretti e Mercedes Morán fazem o casal fundador da igreja (Reino da Luz). Chino Darín interpreta o filho de um político, que se torna braço direito do religioso e noivo de uma de suas filhas.

    A solidez do roteiro e a qualidade dos intérpretes contam a favor da série. Seus primeiros oito episódios são movidos a reviravoltas, muita ação e golpes baixos, num ambiente em que políticos, pastores e manipuladores se esmeram numa luta renhida por dinheiro e pelo poder. Não faltarão ingredientes dos nossos tempos como a influência judicial em processos escusos e nem mesmo o elemento tóxico da pedofilia estará ausente da trama.

    Emilio Vázquez Pena (Diego Peretti) é o pastor carismático de sua igreja, secundado por sua mulher, Elena (Mercedes Morán), manipuladora e implacável. Julio Clamens (Chino Darín) é um advogado de passado confuso, filho de um político, e que encontra na igreja de Emílio e Elena um ambiente de reconciliação, mas também um campo fértil para plantar e colher os frutos de sua ambição. Em torno deles se move um assessor político, Ruben Osório (Joaquin Furriel), que é quem de fato controla o jogo, aparentemente defendendo interesses econômicos estrangeiros.

    É fácil aproximar a ficção de Vosso Reino com o que de fato acontece na realidade do continente e também em outras partes do mundo. A descrença popular com a política tradicional tem permitido a ascensão dos chamados “outsiders”, os candidatos antissistema que praticam uma política populista, em geral de cunho religioso e moralmente retrógrada.

    A influência do campo religioso viceja nesse ambiente de medo e representa uma grande ameaça ao Estado laico. A novidade da série é associá-lo à criminalidade e à corrupção, denunciando a duplicidade moral em que se move. Tal enfoque não passou despercebido na Argentina, onde uma associação de igrejas evangélicas protestou e tentou forçar a Netflix a tirar a série do ar. A plataforma de streaming aparentemente não se intimidou e já anunciou uma segunda temporada de Vosso Reino.

    Convém registrar que estabelecer relações promíscuas com o Estado não é ambição exclusiva das crenças neopentecostais. Quem quiser observar como a Igreja Católica dos séculos 15 e 16 se comportava no poder secular pode assistir à ótima série Os Bórgias (Starzplay), bastante instrutiva. Pode também lançar um olhar aos Estados teocráticos contemporâneos espalhados pelo mundo e meditar se são algo desejável para a nossa sociedade. A separação entre Estado e Igreja foi uma conquista civilizacional que está sendo minada em vários países, Brasil incluído.

    Os autores de Vosso Reino tomaram cuidado para se manter no plano da ficção. A igreja comandada por Emílio e Elena não existe na realidade, embora possa ser reconhecida em dezenas de seitas conhecidas em vários países, inclusive no Brasil. O crescente poder político, o acúmulo de capital, a exploração da fé popular – tudo isso vem sendo estudado e denunciado mundo afora. Vosso Reino faz explicitar esse processo através de uma história inventada. Mas, como dizia um pensador da antiga Roma, a força da ficção é que ela fala de nós.

    Nesse sentido, é curioso que uma série como esta tenha surgido na Argentina, país onde a presença evangélica é menor que no Brasil, embora crescente. Entre nós, os efeitos corrosivos das crenças neopentecostais sobre a sociedade ainda não foram tratados em produções de streaming, mas são mote principal de dois ótimos filmes – Divino Amor, de Gabriel Mascaro, e do ainda inédito Medusa, de Anita Rocha da Silveira, apresentado no Festival de Berlim.

    Ambos são críticos e colocam o foco na regressão dos costumes e na opressão das mulheres, cuja liberação é vista com temor, desconfiança e hostilidade pelas igrejas. Vosso Reino tem isso também, mas estende seu foco à questão política em seu âmbito tradicional, o da conquista do Estado, e pelos meios que forem necessários. Tudo em nome da família, da pátria, de Deus, da moral e dos bons costumes, é claro. A série funciona como um espelho cruel do nosso mundo.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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