‘Ser comparada a meus pais não me matou’, diz filha de Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve
A recente edição do 77º Festival de Cannes teve boa cota de filmes com premissas malucas. E dela faz parte Marcello Mio, de Christophe Honoré, no qual Chiara Mastroianni, de 52 anos, é uma atriz que, cansada de ser equiparada ao pai, decide se transformar nele e, assim, encontrar a própria identidade.
É algo saído diretamente da vida da própria Chiara, sempre comparada aos pais, Marcello Mastroianni e Catherine Deneuve. Com terno, chapéu e óculos, Chiara vira Marcello. No filme, ainda sem previsão de estreia no Brasil, atores como Melvil Poupaud, Fabrice Luchini e a própria Deneuve interpretam versões de si mesmos.
Marcello Mio é o sétimo filme de Chiara Mastroianni com Christophe Honoré – e ambos falaram ao Estadão.
Em cada filme, um ator dá muito de sua alma. Mas nunca vi ninguém dar tanto. Como você se sentiu?
Chiara Mastroianni – Eu não percebi isso na hora, estava me divertindo. Foi só depois que percebi que talvez houvesse alguma coisa. Tenho total confiança em Christophe porque trabalhamos muito juntos. Não é todo dia que você encontra um filme em que pode ser homem, mulher, falar línguas diferentes. Era uma proposta muito rica.
Mas não é apenas uma questão de ser mulher ou homem, mas também de ser filha do seu pai.
Chiara – Claro, mas durante toda a minha vida me disseram que eu parecia com ele. Então, para mim, o fato de tentar explorar isso um pouco mais a fundo foi ousado, intrigante.
A princípio, a ideia pode parecer uma exploração.
Chiara – Sim, mas se trata do Christophe. Antes do filme, fizemos um projeto de teatro sobre a história da família dele. Interpretei a tia de Christophe. Ele confiou em mim para interpretar sua tia, então eu podia confiar nele agora. Além disso, o filme tem muitos momentos de comédia. E achei que era uma boa maneira de falar sobre esse assunto.
Você perdeu seu pai quando era relativamente jovem e deve ter sido desafiador manter uma conversa com ele durante todo esse processo psicanalítico que o filme representa.
Chiara – A vida tem sido mais desafiadora do que o filme para mim porque, como você disse, ele morreu quando eu era jovem. Foram todos esses anos tentando manter uma conversa com ele. De certa forma, o filme é a parte mais fácil. É um filme feito para o público, não é um filme feito para mim. Eu tenho meus próprios problemas para lidar na terapia e tudo o mais, não preciso do cinema para fazer isso.
Christophe Honoré captou bem o seu pai?
Chiara – É como se Christophe tivesse tido algum tipo de acesso estranho à minha inconsciência. Quando eu era adolescente, às vezes roubava um paletó aqui e ali, mas todos nós fizemos isso em algum momento. Para mim, essa busca por meu pai tem sido muito solitária. E, de repente, acabo em um filme com 40 pessoas e todos os dias podemos falar do meu pai não só como pai, mas também como ator. É como se finalmente se fizesse a luz. Eu sei que o filme gira em torno da figura paterna que está morta. Mas, para mim, parecia muito vivo, como nunca antes.
Você aprendeu alguma coisa sobre seu pai?
Chiara – A história é mais sobre uma mulher, uma atriz, que está em busca da própria identidade. E ela não encontra o seu pai, mas a si mesma. Por isso, no final, ela pode se despir e voltar a nadar no mar. E, em francês, mar tem o mesmo som de mãe (mère, em francês), caso se queira uma camada extra.
Você realmente ouve dizerem que deveria ser mais parecida com Marcello?
Chiara – Ah, já ouvi coisas muito piores que isso. Mas está tudo bem, ser comparada a eles não me matou. Meus pais não fazem política. Não são ditadores. São atores, e atores muito legais. Então estou bem. Não é nada de que me envergonhe. A família é um tema fantástico para o cinema, não importa se a sua é famosa ou não. Qual é o seu lugar na família? Como a família ou o olhar público definem para você uma identidade que não é necessariamente a sua verdadeira identidade? Você recebe um papel até mesmo dentro de sua própria família. Conheço muitas pessoas, inclusive eu, que parecem estar em paz consigo mesmas, mas só não querem incomodar os outros com seus problemas.
Você perguntou mais alguma coisa para sua mãe a respeito de seu pai?
Chiara – Acho que não. Sei que é muito decepcionante ouvir isso, mas, quando estamos no set, somos realmente atores. Como atriz, gosto de viver uma vida que não é a minha. Então, quando estou no set com minha mãe ou meus amigos, ou quem quer que seja, nos tornamos só atores.
Certa vez, entrevistei Catherine Deneuve e ela disse que sentia pena de Chiara porque a filha precisava falar sobre sua mãe e seu pai o tempo todo. Christophe, você acha que, como amigo, fica mais ofendido do que ela mesma?
Christophe Honoré – Este é o sétimo filme que Chiara e eu fazemos juntos. A segunda pergunta que sempre fazem a Chiara é se ela prefere seu pai ou sua mãe. Chiara sempre responde com muito humor, mas é uma forma muito violenta de se dirigir a ela. É uma redução dela a uma pequena parte de quem ela é. Espero que o cinema nos ajude a escapar disso.
Chiara – Ontem, em um programa de televisão, me mostraram um trecho da última entrevista que meu pai deu em Cannes, antes de sua morte. E o que ele diz é maravilhoso, não se trata disso. Mas o que eu vejo cada vez que o clipe é exibido é meu pai morrendo. Eles nunca acham que, talvez, vê-lo nessa fase da vida, nesse estado, será doloroso para mim. É estranho porque dizem ser seu pai, então sabem que é seu pai. Mas, ao mesmo tempo, pedem que você reaja como se estivéssemos falando de um objeto. E isso é violento porque pedem que você reaja como filha, mas não se sinta como filha.
Você tem demonstrado ótimo timing cômico. É algo em que você trabalha?
Chiara – Para ser sincera, espero ter mais oportunidades, inclusive com Christophe. É como se eu estivesse dizendo a ele: “Espero ter mais filhos com você”. Meu único medo com o filme é que Christophe diga que este era o último.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.