• Selva Almada ambienta ‘Não é um Rio’ em vilarejo onde a violência é decisiva

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  • 11/09/2021 08:40
    Por Ubiratan Brasil / Estadão

    A escrita da argentina Selva Almada é precisa, econômica, não admite firulas. Mas isso não impede que seus textos sejam carregados de poesia – Selva consegue a proeza de usar poucas palavras para dizer muito. Ou, às vezes, mais sugerir que afirmar. É o que o leitor pode observar em Não É um Rio, lançado agora pela editora Todavia.

    A trama se passa no interior da Argentina, região pontuada por vilarejos onde o tempo parece congelado, só quebrado por casos de violência ou rupturas familiares. Aqui, durante uma pescaria, três homens revelam os contornos de sua existência da mesma forma que o rio por onde navegam tem o curso tracejado.

    Enero Rey e Negro levam Tilo, o filho adolescente de Eusébio, um amigo já morto, nessa pescaria e, depois de comer e beber vinho, eles ficam com o humor alterado e entram em um estado de estupor, cozinham, falam e dançam, eles lutam com os fantasmas do passado e do presente.

    É o ponto de partida para Selva Almada investigar a crueldade e a violência de um universo dominador, o masculino, que se sustenta por meio de alianças secretas. Trata-se de um terreno já conhecido por ela – em Garotas Mortas, lançado aqui em 2018, a autora argentina apresentou o relato ficcionalizado da morte de três meninas nos anos 1980.

    Ela viajou a três províncias argentinas para apurar a morte das garotas, um caso mal resolvido, com nenhum culpado cumprindo pena. Lá, conversou com amigos e familiares e, com um vasto material à mão, escreveu um texto de não ficção. Mas, ao perceber que o texto não tinha a sua voz, optou por usar os dados e escrever com as ferramentas da ficção. Com isso, conseguiu narrar um assunto espinhoso de uma forma menos dura. Sobre sua obra, Selva respondeu, por e-mail, às seguintes questões.

    Como em seus dois romances anteriores, o território da narrativa é um conflito: a religião em O Vento Que Arrasa, a inimizade entre famílias em Ladrilleros. Em Não É um Rio, é apenas uma troca de olhares. De onde vem seu interesse pelos detalhes?

    Gosto de pensar em uma história (seja ela curta ou um romance, ou mesmo uma longa história) como uma cena que se vê pelo canto do olho: um fragmento muito pequeno de algo maior que não podemos ver, mas que podemos intuir ou perceber ou começar a construir a partir desse fragmento. Normalmente, é assim que começo a escrever, aquela coisa minúscula que não consigo ver completamente e que a escrita revela.

    Por que a natureza em sua narrativa é um território e um personagem ao mesmo tempo?

    Talvez tenha a ver com a minha própria história de vida: cresci em um lugar onde a natureza era algo vivo, mutante, desafiador… Não gosto de pensar nisso apenas como um cenário, mas como o que é: um sistema vivo do qual nós, humanos, fazemos parte – há diálogo, interferência, conflitos e atos de amor como em qualquer sistema.

    Os personagens são pescadores e, para pescar, é preciso silêncio – esta poderia ser uma das razões para uma narrativa tão fragmentada?

    Sim, mas não entendi isso desde o início. Na verdade, o romance tinha uma primeira versão de que não gostei justamente porque “era muito falado”. Aconteceu também com os outros dos meus romances, em que a forma de narrá-los me foi ditada pela mesma trama. Não É um Rio é um romance com uma presença estelar da paisagem: o rio, a montanha, tudo o que neles vive… A pesca é a desculpa para que os personagens estrangeiros, aqueles que ativam o conflito, estejam lá. Para pescar, é preciso se calar; para escrever também… E este é um romance feito de silêncios.

    O cenário desse romance (a ilha, o rio), me parece, favorece a presença do místico, do supersticioso, estou certo?

    É um cenário muito sugestivo. O litoral argentino, onde o romance é ambientado, é muito rico em lendas, contos orais de fantasmas, música que recria essas histórias. Também vieram de lá alguns dos nossos maiores poetas, como Juan L. Ortiz (o maior de todos, na minha opinião), que escrevem para aquele rio e para aquela montanha. E, se nos referimos à literatura universal, a ilha sempre foi construída como um espaço mítico, onde tudo pode acontecer.

    Como você vê o significado dos nomes e que tipo de coisas você pode transmitir ao leitor por meio da experimentação com o conceito de um nome?

    Os nomes costumam aparecer simplesmente. Enero (‘janeiro’, em espanhol) vem de uma anedota que me contaram, sobre um camponês que deu aos filhos o nome do mês em que nasceram. Janeiro é verão, gostei disso para o personagem que, na primeira versão, era muito mais expansivo. Tilo é porque moro em um quarteirão cheio de tílias e o aroma de suas flores anuncia o verão, minha estação preferida. Depois, há muitos nomes que são típicos da região, como Aguirre. E Siomara era o nome de minha avó.

    A amargura e o tédio são os grandes males contemporâneos? Por que vivemos em tempos tão angustiantes?

    Não sei. No que diz respeito à angústia, estamos no meio de uma pandemia há mais de um ano, milhares de pessoas morrem todos os dias, há mais de um ano estamos imersos na morte e na incerteza, não me ocorre que isso pudesse gerar outra coisa que não angústia.

    Não te impressiona o poder que a ficção tem de interferir na realidade e até de criar novas realidades?

    Escrever me parece impressionante como qualquer outra arte, música, plasticidade. Todas impactam nossas vidas, nos desafiam, isso é sempre maravilhoso.

    O mal é um aliado da literatura?

    Não sei. Suponho que seja um tema recorrente, mas não sei se é um aliado da literatura, não vejo em que sentido seria.

    Você acredita que os romancistas têm uma obrigação moral para com seus personagens e seus leitores?

    Não, os romancistas não devem ter obrigação moral, por que teriam? Acho que escrever é pura liberdade, portanto qualquer obrigação, qualquer sentimento de obrigação, violaria a escrita.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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