• Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?

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  • 18/mar 08:00
    Por Vanisa Moret Santos

    Como pode um sentimento de culpa que afeta o sujeito ter raizes inconscientes?

    Quando no artigo do dia 04/03/24 sinalizamos haver um sentimento de culpa inconsciente, como Freud o constatou em muitos casos de neurose, é à causalidade psíquica desse sentimento que Freud se refere, ou seja, às suas raízes inconscientes. O sujeito sofre, mas não consegue conectar esse sofrimento ao momento traumático histórico que marcou seu psiquismo. 

    Através dos relatos de seus pacientes, Freud observou que tais eventos traumáticos, poderiam nem ter ocorrido de fato, bastava que fossem apenas pensamentos de desejo, evidenciando que, para o nosso psiquismo, pensamentos e atos são equivalentes. Em função disso, certos pensamentos precisam ser continuamente negados a fim de afastar da consciência determinadas ideias insuportáveis, como as consideradas “pecaminosas”. Na neurose, esse processo de negação chama-se recalque. Eventualmente, tais registros inconscientes recalcados retornam nos sintomas, nas inibições, sendo a angústia um dos primeiros sinais de que algo não vai bem.  

    As situações traumáticas deixam marcas no psiquismo do sujeito e ficam registradas como traços mnêmicos apagados que podem, em algum momento, conectar-se a uma situação atual gerando grande sofrimento. Não estamos falando aqui das neuroses pós traumáticas causadas por catástrofes naturais ou guerras, pois tais eventos não foram causados pelo sujeito e, portanto, deles não poderia se culpar, ainda que, em certos tipos de adoecimento grave, há os que se culpem por tais eventos, mas não é disso que estamos falando aqui. O trauma a que estamos nos referindo neste artigo conecta-se ao sentimento de culpa do sujeito neurótico cujo ato ou pensamento se revela como transgressor para ele/ela, tais como, os que se ligam a desejos sexuais (pelo outro) e de morte (do outro). Como consequência, surgem a culpa e os impedimentos que o sujeito se impõe para não se aproximar desses conteúdos. É algo tão inconsciente que o sujeito não se dá conta no dia-a-dia. A própria pessoa cria ou se envolve em situações adversas na vida de tal modo que ela se prejudique frequentemente. Mesmo admitindo sua responsabilidade nas cenas que se repetem, o sujeito não consegue saber realmente o porquê disso e busca explicações e soluções banais ou místicas. Já ouviram falar em “dedo podre”, em “carma” ou em “auto boicote”? Pois são palavras e expressões do senso comum que apontam para essa situação, mas não a exploram em termos analíticos.

    Freud observa que não se deve desresponsabilizar o sujeito quando ele ou ela se diz culpado/a por alguma situação, mas pedir que ele/a fale mais sobre isso. Se buscam situações desfavoráveis, é porque, inconscientemente, o fazem para expiarem uma culpa que está associada a algum ato ou pensamento de desejo considerado transgressor, proibido.

    Ao longo de uma análise, as coisas tendem a se esclarecer, o sujeito produz um saber a mais sobre seu sintoma, livra-se de muitas de suas inibições e de certas angústias paralisantes. Eis o que entendemos com Freud por cura pela fala, pois se o sujeito colou-se a determinadas palavras malditas, como pragas e maldições, somente as suas próprias palavras, benditas por ele mesmo em análise, podem transformar um texto mal escrito no seu psiquismo em uma nova história de amor e de trabalho. Trata-se, no entanto, de uma cura sem arrogâncias, ingenuidades ou ufanismos, pois ficamos advertidos de que algo desse traço sintomático, que funda nosso inconsciente e o nosso próprio estilo, restará em nós. 

    Lacan fala sobre “letra de gozo” como isso que do sintoma resta irredutível em nós. Podemos dizer que cada um traz essa marca sintomática, tal qual um selo, como Antonio Quinet recentemente pontuou em um dos Seminários das quartas-feiras, no Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro.

    Um sintoma é produto de um sofrimento real que invade o sujeito, mas pode, em algum momento, se transformar em arte seja literária, plástica, cênica ou musical. Enquanto produção simbólica e imaginária, a arte invade o real do sofrimento para dele tentar dar conta, mas isso só ocorre porque a arte foi antes causada pelo próprio real. 

    No final das contas, mesmo após finda uma análise, percebemos que ainda estamos no meio. É justamente nesse ponto que descobrimos algo de novo em nós:

    “isso que não disse

    é preciso sê-lo 

    em mim”.

    Sim, não há completude. Tudo está interligado por “furinhos” que restam em nosso saber, na linguagem, no outro. Os furinhos, esses microporos que nos permitem respirar, eles estão ali, bem no meio do selo de uma carta inacabada que somos nós.

    Vanisa Moret Santos

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