• Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?

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  • 01/set 08:00
    Por Vanisa Moret Santos

    Resistir à resistência de ler um texto que nos causa horror pode nos ensinar o quê ?

    Levei pouco mais de um ano entre tomar coragem de iniciar a leitura de Toda fúria (2023), de Tom Farias, cuja temática me repelia mais do que me interessava, e concluir essa tarefa com extrema dificuldade e resistência. Só o fiz porque não consegui deixar de saber como toda aquela história marcada por extrema violência e repetitivas carnificinas iria terminar. 

    Não foi uma leitura fácil, embora o texto seja bem direto, pouco rebuscado e de linguagem simples, por vezes, até demais. O estilo do texto não é aprazível, não me causou êxtases estéticos revigorantes, embora eu tenha saído mexida depois de finalizar a leitura. Por várias vezes, pensei, “se não está gostando, larga!”, mas insisti porque percebi que minha dificuldade era uma espécie de negação, pois não queria saber de encarar uma realidade da qual eu nunca tinha me aproximado tão intensamente, ainda que escute relatos semelhantes com certa frequência em meu consultório, pois tenho pacientes que vivem em comunidades. Entretanto, ter tido contato com a versão de inúmeros atos desumanos sob a ótica dos “cria”, foi bem difícil. Como mulher branca, nascida em uma família católica, de trabalhadores, que tinham práticas de vida de cunho moralista, ainda que eu tenha me distanciado desses ideais, ficou nítido que algum tipo de alienação restava em mim, como uma resistência à obscenidade da fúria que envolve o tema da violência nas comunidades dominadas pelo crime organizado e as consequências disso no asfalto.

    Minha crença infantil na bondade humana foi se dissipando ao longo do meu processo de análise pessoal, de tal modo que minha insistência em acreditar no melhor do ser humano deixou de ser encarada como uma virtude quando percebi que isso me colocava em risco diante dos deslimites do outro e dos meus, em algum nível. Apesar de ter passado por situações de violência na infância, eu me distraía de seus efeitos destrutivos através da escrita criativa e poética. No entanto, sinceramente, nada do que vivi se comparava às situações repugnantes que o autor escancara com Toda Fúria. Saber sobre isso foi uma experiência ruim. 

    Tenho certa esperança por dias melhores, ainda que cada vez menos diante do que vem acontecendo no mundo ultimamente. Talvez por efeito de uma negação da maldade humana em mim mesma eu não tenha conseguido ter uma experiência boa como leitora de Toda fúria.

    Interrompi a leitura inúmeras vezes até que tomei coragem de terminar o que havia começado. Valeu a pena? Ainda estou aqui ruminando essa resposta, pois eu preferia não ter descoberto os detalhes do que já sabia, ou seja, que o ser humano é capaz de atrocidades inimagináveis. Acontece que, faz algum tempo que estamos sendo confrontados e afrontados diariamente com as cenas de puro horror do genocídio em Gaza, além de outras situações semelhantes no Brasil e no mundo. Toda essa revolta que venho sentindo vem se transformando em algo próximo a uma “fúria” direcionada aos causadores de tamanhas atrocidades e ao mutismo dos governantes. Acho que isso me deu forças para seguir com a leitura e chegar ao seu final apoteótico e magnífico, ainda que trágico. Justamente, nesse momento, eu me senti conectada ao texto. Ficou clara a intenção do autor de mostrar como todos podemos sair perdendo se nos deixarmos levar pela fúria insana e pela ignorância, se, para explodir o inimigo, também for preciso exterminar a nós mesmos de uma só vez.

    Os comentários do autor ao longo da sua narrativa conferem um tom didático às cenas, parecendo desejar esclarecer como o sistema do crime organizado é retroalimentado pela corrupção em todos os seus segmentos e como jovens, como o personagem Caniço, são encurralados num beco sem saída desse destino terrível que os acompanha desde o nascimento até a morte.

    Entre “os cria” das comunidades e os governantes inescrupulosos, estamos nós, trabalhadoras e trabalhadores, mulheres, mães, crianças, jovens, adultos, velhos, animais, mares, florestas, alvos fáceis de toda a ignorância e de todo o ódio que o ser-humano é capaz de nutrir contra si mesmo. Definitivamente, o crime e a ignorância não compensam, foi um pouco do que aprendi com Toda fúria.

    **Sobre a autora: Psicanalista, professora e coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ, membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, escritora e poeta, ocupa a cadeira de número 23 na Academia Brasileira de Poesia, tendo recebido recentemente o prêmio de membro honorária da Academia Petropolitana de Letras, é colunista deste jornal em que vem compartilhando, com frequência, às segundas-feiras, textos relacionados à subjetividade humana e suas conexões com a clínica e com temas da atualidade.

    **Instagram: @vanisamoretsantos

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