• Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?

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  • 04/mar 08:00
    Por Vanisa Moret Santos

    “Pailavras que estais em mim”

    No artigo anterior, vimos de forma introdutória e muito pontual que nossas escolhas têm a ver com determinados padrões aos quais nos fixamos, especialmente na infância. Padrões que se refletem na forma como nos relacionamos com as pessoas, com nossos desejos e de como interpretamos nossos sofrimentos. E tudo isso tem a ver com o modo como nos sentimos amados e valorizados pelo outro. A base de nossos sentimentos está relacionada ao momento histórico de nossas vidas em que recebemos os primeiros cuidados por parte de quem nos recebe no mundo e nos cria e, posteriormente, de como fomos educados por tais pessoas, geralmente nossas mães e nossos pais ou quem ocupe essas funções.

    Ao ser educada, a criança entra em contato com regras e com certos impedimentos e logo percebe que não pode ter tudo e todos ao seu dispor sempre que desejar. Além disso, sente que vai perdendo certo prestígio e, aos poucos, percebe que seus amados pais têm outros interesses e atividades na vida além de cuidarem dela. Como pode a criança reconquistar ou manter esse lugar tão valorizado pelo outro? Dependendo de como ela interprete o que o outro quer que ela faça para ser amada, em muitos casos, a criança pode se tornar um adulto que tentará atender às inúmeras demandas do outro, ou ainda, tentar convencê-lo de que ela é maravilhosa e imprescindível para a sua existência (a do outro!).

    Como tais estratégias são impressas no inconsciente, elas continuam a ser usadas na vida adulta, pois visam a afastar o sujeito da ideia insuportável de uma possível perda do amor do outro o que, essencialmente, tem a ver com o seu sentimento de amor-próprio. Isso só passará a ser um problema quando tais estratégias começarem a falhar e, ao invés de favorecerem o sujeito, passarem a dificultar sua vida, causando-lhe algum tipo de sofrimento.

    Hoje vamos abordar uma estratégia muito frequentemente usada na neurose obsessiva que é a de atender à demanda do outro a qualquer custo. Nesses casos, o sujeito não suporta a ideia de deixar o outro em falta. Veremos que não se trata de uma bondade ou de uma generosidade descomprometida, pois há algo que o obsessivo tenta evitar com tal estratégia. Teria essa estratégia alguma coisa a ver com o temor de lidar com suas próprias falhas ou com algum desejo proibido que ele/a tenta negar?

    Na neurose obsessiva, o sentimento de culpa inconsciente está atrelado a uma espécie de punição que o sujeito se impõe através da evitação de realização de desejos, especialmente os que lhe trouxerem prazer. Consequentemente, também evitará realizar ações que o favoreçam em algum nível, pessoal, profissional ou financeiro. O sujeito, nesses casos, sofre de um temor constante de que, se realizar um desejo qualquer, algo de muito ruim poderá acontecer com as pessoas amadas. É essa a equação “lógica” da neurose obsessiva que fundamenta o quadro de várias medidas protetivas de que o sujeito se vale para se afastar dos perigos que cria em sua mente numa rede infinita de pensamentos mórbidos em torno de pessoas supostamente amadas.

    Uma das características da neurose obsessiva é o apego à palavra. “Sou uma pessoa de palavra”, orgulha-se o jovem analisante que dificilmente deixa de cumprir sua palavra, mesmo que isso signifique que ele tenha que se prejudicar. Eis aí o ponto a ser sublinhado, pois é justamente para se prejudicar que o sujeito se amarra à palavra dada ao outro, como uma forma de punição ou castigo. Em seu texto, “Atos obsessivos e práticas religiosas” (FREUD, 1907, pág. 107-109), Freud ressalta o fato de que, por trás dos rituais e cerimoniais tanto de sujeitos obsessivos como os praticados em algumas religiões, há um sentimento de culpa inconsciente que move o sujeito na direção de situações na vida em que ele ou ela irá se prejudicar, como uma espécie de expiação de seus deslizes e “pecados” pregressos.

    Freud trabalhará o tema sobre o sentimento de culpa em outros artigos, partindo de novas pesquisas e observações clínicas, não somente relacionando o sentimento de culpa à atitude de autorrecriminação que ele verificava nos casos de neurose obsessiva, mas também à atitude de autoacusação e de autodepreciação, observada nos casos de sujeitos mais seriamente adoecidos, como na melancolia, um tipo de adoecimento grave narcísico trabalhado por ele em “Luto e Melancolia” (FREUD, 1917, pág. 99-118). Outro estudo importante sobre a sintomática provocação de situações vexatórias, dolorosas e humilhantes é desenvolvido mais à frente em sua obra, quando Freud aborda o masoquismo moral (FREUD, 1924, pág. 287-322). Nesses casos, Freud observa que o sujeito busca uma satisfação pulsional masoquista, provocando contra si situações que envolvam grande sofrimento ou prejuízo, como um tipo de punição tardia, ainda que isso não esteja conscientemente relacionado a um gozo sexual.

    Voltando à ideia inicialmente introduzida aqui do conceito de sentimento de culpa inconsciente que faz o sujeito se amarrar à palavra, trago um momento de iluminação na clínica muito interessante em que o analisante se dá conta de seu sintoma dizendo, “eu acabo me ferrando porque o meu problema é a palavra, se eu dou minha palavra, não consigo descumprir”, ao que intervenho perguntando, “nem mesmo quando você acaba se ferrando…?”, ao que o analisante brilhantemente reage dizendo, “pois é… mas se o contexto mudou, se eu percebo que o outro está se aproveitando de mim e que eu vou me ferrar, então, eu posso romper com a palavra dada, né ?”. Eis aí, o momento de um corte com efeitos de iluminação. Ele se dá conta de que a palavra dada era sempre cumprida, mesmo quando ele se ferrava. Além disso, ele foi percebendo que o outro a quem dava sua palavra, não só abusava de sua “boa vontade” como o prejudicava. Falaremos mais sobre isso em outro artigo em que abordarei o tema dos relacionamentos tóxicos.

    Retomando o recorte clínico que trouxe aqui como ilustração, pude observar que, dentre outras coisas das quais o analisante foi se dando conta, havia um orgulho alienante a um dito materno que valorizava uma grande virtude sua, “ser um menino de palavra”.

    A propósito disso, deixo como provocação poética, a “Oração do poeta”, um poema que faz parte de meu livro, Mães faltosas crônicas e outras histórias, publicado pela editora Atos e Divãs, (Santos, 2021, pág. 162).

    “Oração do poeta”

    Pailavras que estais em mim, sublimadas sejam os vossos nomes, seja a voz de vosso reino refeita em minha vontade, assim nas pedras como no papel, o dom nosso de cada dia nos dai hoje, perdurai em nós nossas crianças, assim como perduramos naqueles em que formos lidos, não nos deixeis cair sem tentar ação, mas livrai-nos em letras que amem

    (vms)

    Referências bibliográficas

    FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1996.

    ______________. (1907). “Atos obsessivos e práticas religiosas”. Volume IX.

    FREUD, Sigmund. Neurose, psicose, perversão. Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

    ______________. (1917). “Luto e melancolia”.

    ______________. (1924). “O problema econômico do masoquismo”

    SANTOS, Vanisa Moret. Mães faltosas crônicas e outras histórias. Rio de Janeiro: Atos e Divãs Edições, 2021.

    **Por Vanisa Moret Santos: poeta, escritora, psicanalista membro do Fórum de Psicanálise da Escola do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro, professora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ, mulher, mãe, dona de casa, autora do livro, Mães faltosas crônicas e outras histórias, lançado pela Editora Atos & Divãs em 2021.

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