• Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?

  • 10/mar 08:00
    Por Vanisa Moret Santos

    O que de mim afeta o outro?

    Diz-se que o que de nós afeta o outro pertence ao outro e que não temos nada a ver com isso. Até faz sentido pensar assim quando o que afeta o outro é algo que não podemos controlar, como nossa voz, tom de pele ou qualquer traço que lhe evoque algo de sua própria relação narcísica no espelho. No entanto, é preciso saber reconhecer o que de nós afeta muitos outros em situações diversas e como isso é perceptível em nossas relações com nossa própria subjetividade, ou seja, como aquilo que fere o outro aponta para um gozo inadvertido que já identificamos como parte de nosso sintoma, mas que não conseguimos controlar.

    Recentemente, em uma conversa informal em uma roda de amigas, uma delas disse o seguinte: “De repente, percebi que o que dispara uma reação de ódio no meu filho é uma espécie de medo de que eu possa aniquila-lo com minhas palavras…” Naquele instante, muitas fichas caíram, pois, recentemente, tive a mesma impressão de que algo em mim amedronta o outro que, por sua vez, reage com extrema agressividade e de uma maneira totalmente abrupta e inesperada, como se estivesse me atacando para se defender de mim. Isso já me aconteceu inúmeras vezes.

    Eu já tinha analisado isso sob muitos ângulos. Já tinha percebido que isso que de mim afeta o outro também é de minha responsabilidade, mas, pela primeira vez, fiz uma leitura um pouco diferente.

    Geralmente, esses rompantes de mal-estar acontecem entre pessoas que valorizam nossas palavras e as tomam quase como vereditos inabaláveis. Fazem parte desse conjunto, a família, nossos pares de trabalho, amizades e aqueles que nos admiram por algum motivo. Portanto, quando emitimos opiniões, somos verdadeiramente levados a sério, mesmo que não estejamos tão seriamente comprometidos com o que foi dito. Por exemplo, quando fazemos uma observação bem intencionada sobre algo que diz respeito ao outro e cujo teor da mensagem não é interpretado como uma ajuda, mas como uma agressão velada, podemos gerar um grande desconforto. Até provar que “focinho de porco não é tomada”, a coisa já desandou! Para nos sentirmos menos culpados, dizemos que “o que de mim afeta o outro é coisa dele”, mas não é bem assim.

    Há algo de assustador em cada um de nós que nos escapa, na maioria das vezes. É algo incontrolável. Como podemos nos advertir desse “estranho familiar” que nos habita senão através de uma análise, permitindo-nos ser confrontados pelo próprio estranhamento em nós? O papel do analista é agenciar essa escuta do analisante em relação ao estranho familiar que lhe habita. Desse modo, ao se espantar com o seu próprio horror, o sujeito, em análise, começa a ter uma noção sobre o que de si afeta o outro. Chamamos isso de retificação subjetiva. Uma análise é um processo de inúmeras retificações subjetivas que implicam o sujeito para sempre. Mesmo depois que uma análise tenha chegado ao fim, seus efeitos estão sempre presentes.

    É preciso que o sujeito se dê conta do poder e do valor de seus gestos e de suas palavras. Muitas vezes, por não ter a dimensão de sua própria importância para o outro, o sujeito pode se portar como uma criança sem limites e sem noção. O que isso revela é uma falta de noção de si diante do outro, o que, em última instância, pode significar uma falta de amor próprio, pois o sujeito não se reconhece como digno de respeito e admiração. São muitas as camadas a serem exploraras, mas não podemos apenas seguir terceirizando o efeito de nossa existência para o outro e no mundo.

    Ao nos darmos conta de nosso sintoma, de nossas fragilidades e desejos, percebemos como nosso estilo é efeito de nossa ética pessoal. Assim, ficamos mais responsáveis por nossas palavras e por nossas existências, pois existir é, por si só, um ato político do qual não podemos escapar.

    Existir como um sujeito desejante de um bem viver faz parte de uma ética que nos diz respeito e que afeta o mundo em que vivemos.

    Dra. Vanisa Moret Santos
    Psicanalista, escritora, professora e coordenadora do Curso de Especialização em Psicologia Clínica da PUC-RJ, membro do Fórum do Campo Lacaniano do Rio de Janeiro

    Últimas