• Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?

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  • 03/jan 11:08
    Por Vanisa Moret Santos

    A cortina perdida

    Como muitos sabem, o psicanalista francês, Jacques Lacan (1901-1981) era um grande apreciador das artes e um leitor erudito. Era comum fazer uso das literaturas e de estudos de outros campos do saber para conecta-los aos estudos teóricos de psicanálise, associando-os à clínica. Ele transmitia seu ensino através de seminários que eram frequentados por colegas psicanalistas como artistas de vários segmentos que também estavam em formação psicanalítica contínua. Os seminários eram transcritos por vários desses frequentadores e publicados. Entretanto, há um livro que foi escrito por Lacan cujo título é Escritos, uma reunião de textos inspirados em seus seminários. O primeiro escrito desses Escritos é dedicado a um conto de Edgar Allan Poe (1809-1849), “A carta roubada”, a partir do qual Lacan faz uma leitura muito interessante sobre o papel da “letra/carta” que está “guardada” em nosso inconsciente, como um tesouro perdido em nós mesmos a partir do qual agimos na vida sem nos darmos conta dessa marca. Agimos a partir do efeito de uma letra/carta perdida que nos marca, mas da qual não temos consciência. 

    Guardadas as diferenças entre o conto de Poe e a história que vou contar, o que há em comum entre essas duas histórias é justamente o fato de que, havia algo que se mantinha ao alcance do sujeito, diante de sua própria vista, mas que parecia ter sumido, ter se perdido, ou mesmo, roubado. Como quem procura pelos os óculos que estão na própria cabeça, o sujeito, muitas vezes, procura por um objeto supostamente perdido, sem notar que o tem bem diante de si.

    A personagem principal dessa trama sobre o objeto perdido é uma cortina de banheiro novinha, mas que permanecia guardada dentro da embalagem. Trata-se de uma cortina azul de box de chuveiro que permaneceu pendurada em um cabideiro da área de serviço por anos, mas não era vista. Ficava precisamente no lugar onde se penduravam as camisas lavadas para desamassarem enquanto secavam nos cabides. 

    Ao precisar trocar a cortina antiga, iniciou-se a procura pela “nova” que estava na embalagem, como disse, pendurada no mesmo lugar há anos. Depois de muito procurar, o sujeito foi convencido por si mesmo de que tinha perdido a cortina azul e acabou comprando outra, de uma qualidade inferior, mas que fazia a função de cortina. Nem precisou tirar a nova cortina da embalagem, pois, pouco depois, os olhos que não viam o objeto supostamente perdido, magicamente, enxergaram a outra cortina, bem diante de si, exibindo-se como uma criança traquina que acabava de lhe pregar uma peça! 

    A história, levada para análise, descortinou uma série de cenas que já estavam lá, embaladas pelos panos do recalque. 

    Ao mudar sua estratégia, imprimindo uma nova ação e, ainda por cima, tendo que pagar por isso, o sujeito acabou descobrindo que o objeto, supostamente perdido, estava bem diante dele, desde sempre. 

    Entre achados e perdidos, o sujeito seguiu descortinando palavras e revendo uma série de emoções ligadas a cenas apagadas de sua memória. Esses dias, pouco tempo depois desse momento de epifania com a descoberta da cortina perdida, o sujeito, intrigado com o afastamento prolongado de um amigo, lembrou-se do episódio da cortina perdida e resolveu deixar de insistir de procurar pelo amigo.  Percebeu que “não insistir mais em se aproximar das pessoas que se afastaram é uma forma de se fazer respeitado. Praticar o respeito próprio também inclui respeitar o outro”, como finalizou sua sessão naquele dia.

    Tudo isso me fez lembrar de um dito bíblico, “amar ao próximo como a si mesmo” que é, na realidade, um pleonasmo disfarçado, pois o próximo é sempre o próprio sujeito. É preciso aprender a nos amar originalmente. Para que isso aconteça, temos que ter nos sentido amados e respeitados pelo outro cuidador. Portanto, se não aprendemos  sobre o amor próprio, não podemos amar ou respeitar o próximo. Há nesse dito bíblico uma lição sobre a origem do amor pelo mundo que nos cerca, um saber a ser descortinado em cada um de nós: 

    “só o amor próprio nos aproxima do próximo”.

    Ficamos por aqui.

    Tenhamos um ano maravilhoso, cheio de amor próprio e de descobertas próximas.

    Instagram: @vanisamoretsantos

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