Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?
O texto que segue abaixo foi apresentado pela psicanalista Vanisa Moret Santos no XXIV Encontro Nacional da EPFCL-Brasil que aconteceu em Brasília, de 10-13 de novembro de 2024. Na mesma ocasião, Vanisa lançou seu primeiro livro de literatura infanto-juvenil, O Desinventor, publicado pela Franco Editora/JF. Neste livro lindamente ilustrado por Felipe Reis, a autora aborda como se dá a construção do desejo em um menino de 12 anos, o papel da professora sobre seu ato criativo, dentre outras temáticas relevantes para a atualidade.
“O que quero ser quando crescer?”, o sujeito entrelinhas
Como será que cada sujeito interpreta o que o Outro espera dele/a? Sabemos que a linguagem é falha e que a mensagem que vem do campo do Outro é filtrada pela realidade psíquica de cada sujeito. Realidade esta que se constitui em sua relação singular com as pessoas que ampararam a criança e com quem ela estabeleceu seus primeiros investimentos afetivos, tanto de amor como de hostilidade.
Por mais que saibamos que a infância é um tempo de construção de identificações, de afirmação e confirmação narcísica, isso ocorre em meio a importantes descobertas sobre o próprio corpo, sua sexualidade e toda a angústia que daí advém. Ainda assim, há uma ideia equivocada de que as crianças são inocentemente felizes e de que o amor entre pais e filhos é incondicional e tudo suportará. Na realidade, como Freud aponta em seu texto, “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914), a forma como os pais amam seus filhos “[…] é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo, que há muito abandonaram” (FREUD, 1914, pág. 97). Freud prosseguirá afirmando:
A criança concretizará os sonhos dourados que os pais jamais realizaram – o menino se tornará um grande homem e um herói no lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como compensação para sua mãe. (Idem, pág. 98)
Podemos confirmar essa tese freudiana no dia a dia. Vemos como os pais se regozijam ao observarem as crianças brincando de serem adultas, algumas até falando como os próprios pais, com muita desenvoltura, ou, ainda, performatizando qualquer outra atividade do mundo dos adultos com certa graça, pois é o que se espera delas. O amor e o reconhecimento de si pelo Outro é o prêmio por fazerem o esperado. Em algum momento, entretanto, as crianças se desviam do roteiro previsto e começam contrariar o que delas se desejaria como resposta.
O que será que as crianças do século XXI vêm respondendo sobre o que sonham em ser quando crescerem, uma vez que o sonho dos pais parece estar exaustivamente contaminado pelo capitalismo?
Como seres marcados pela linguagem, em todos os tempos e lugares, as crianças sempre imitaram os adultos. O que parece insuportável para o narcisismo dos pais, é o momento em que as crianças se desviam dos ideais nelas projetados. Quanto maior for a distância entre o ideal projetado nas crianças e o que elas realizam através de seus atos transgressores, maiores são as chances de que sejam rotuladas com algum dos inúmeros transtornos listados no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM5), ou ainda, no CID 10, uma lista de códigos classificatórios de doenças e condições médicas, divididas em categorias. O objetivo desses “catálogos” é padronizar a nomenclatura das patologias para facilitar a identificação delas em qualquer parte do mundo. Os mesmos códigos são utilizados por profissionais de todos os países. Dragadas pelo sistema, passam a ser medicadas, muitas vezes, sem sequer serem escutadas. Não sendo tratadas como sujeitos da linguagem, adoecem com seus corpos e mentes.
Se o desejo do sujeito é constituído narcisicamente a partir do desejo do Outro, os ideais projetados sobre os filhos impactarão na validação de suas futuras escolhas, mas não há garantias de que os filhos realizem os sonhos dos pais. Alguns até parecem seguir os passos previstos, mas o fazem ao seu jeito.
Ao se tornarem adolescentes, é esperado e, até saudável, que esses sujeitos possam se separar subjetivamente dos pais. Assim, é saudável que as crianças possam ser contrariadas por seus pais para que elas também possam contrariá-los.
Com frequência, os jovens contrariam os ideais a eles designados pela família, especialmente os que mostram extrema preocupação com ideais vazios de desejo ou de realização pessoal, desconsiderando o tempo de construção e de reafirmação do desejo do sujeito. Na passagem da infância para a adolescência “sua majestade o bebê, vai perdendo seu trono e seu cetro até chegar o momento em que o corpo infantil se transforma, suas gracinhas deixam de impressionar os pais e adultos que também deixam de ter graça aos olhos dos filhos. Um hiato temporal se abre entre gerações.
O Ideal do Eu projetado no/a filho/a sofre um abalo. Enfim, é chegado o tempo dos embates. É muito comum e até esperado, que os adolescentes respondam às demandas dos pais pelo avesso ao que lhes foi suposto desejar.
Em função disso, surgem vários conflitos existenciais sobre a validação do desejo de reconhecimento de si como um sujeito amado e valorizado pelo Outro. Ao se tornar um sujeito adoecido, o adolescente poderá levar para a vida adulta uma série de demandas infantis de reconhecimento, frequentemente endereçando a seus parceiros/as infinitas queixas sobre uma eterna falta de amor, seja isso interpretado como um olhar de descaso, seja isso entendido como uma fala vazia de reconhecimento. Será em vão qualquer tentativa de esclarecimento, ou de atender às infinitas demandas do parceiro/a, pois não é aí onde se localiza sua falta. Em alguns casos, o sujeito poderá apresentar outra forma de adoecimento, tentando, a todo custo, confirmar o desejo do Outro, parecendo cumprir à risca o que a ele/a foi suposto desejar para não se haver com a falta. Evitando decepcionar o/a parceiro/a, tentará atender às suas infinitas demandas de amor. Seja como for, algo nas relações sempre falhará, pois nessa equação linguageira, há um impossível de dizer e alguma palavra sempre ficará de fora.
Lacan tentou abordar esse desencontro certeiro através da lógica, dizendo que “a relação sexual não existe”, ou seja, reafirmando que não há pares complementares, pois há um mundo de diferenças entre os seres falantes, especialmente entre os amantes. As formas de comunicação são falhas e geram mal-entendido. Justamente por isso, o que se fala precisa ser ainda mais bem dito na tentativa de contornar esses furos. O luto pela queda dos ideais de complementariedade narcísica relaciona-se justamente com esse furo na linguagem. Todavia, para crescer e ter autonomia como sujeito desejante, o adolescente precisa se separar dos pais. Como quem perde as roupas que já não lhe cabem mais, é preciso se haver com seu próprio estilo e poder escolher o que quiser vestir.
Em seu livro, Esse sujeito adolescente (ALBERTI, 1999), a psicanalista Sonia Alberti nos lembra que, “É sobre a separação que recai grande parte da atenção dos teóricos e clínicos da adolescência, que sugerem que a dificuldade do sujeito estaria na separação dos pais, ou seja, nos conflitos que essa “separação” propiciaria” (ALBERTI, 1999, pág. 29).
Nas entrelinhas da passagem da infância para a adolescência, o sujeito e sua família vivem o luto dessa separação. Por mais doloroso que seja, o luto não deve ser apressado, nem o sujeito dopado para nada sentir.
Felizmente, a tristeza é um sentimento que somente os seres humanos podem contornar com palavras. Se não fôssemos seres de linguagem, possivelmente, morreríamos de inanição poética diante das inúmeras perdas e desafios que enfrentamos ao longo da vida.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALBERTI, Sonia. Esse sujeito adolescente. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999.
FREUD, Sigmund. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro, Imago, 1996.
________ (1914) “Sobre o narcisismo: uma introdução”. Vol. XIV. Rio de Janeiro, Imago, 1996.
SANTOS, Vanisa M G M. O Desinventor. Juiz de Fora: Franco Editora, 2024.
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