Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?
Era feliz e não sabia?
“A tristeza é senhora”, como diz a música, “Desde que o samba é samba”, de Caetano Veloso e Gilberto Gil. Já a felicidade é uma percepção que ocorre num momento posterior à realização de acontecimentos bons espalhados ao longo da vida, são pit stops revigorantes de alegrias que colecionamos em nossas lembranças. Sim, a felicidade é uma percepção “tardia” de lembranças-presentes. Talvez seja por isso que insistimos em capturar imagens em nossos celulares, como testemunhos de uma vivência supostamente satisfatória.
É também interessante pensar que o desejo de felicidade se expresse, muitas vezes, no futuro de um pretérito (“gostaria de viajar mais”), condicionado a uma série de situações que nem sempre dependem somente de nós. Já quando falamos “eu quero”, no indicativo do presente, o que fica explicitamente indicado é que há uma vontade de realizar uma ação.
Certa vez, ao atender uma jovem paciente que vivia o luto de uma separação, escutei “errado” o que ela me dizia em prantos. Em meio a suas lágrimas que escorriam sem parar, ela me dizia que já havia tentado reatar com o ex, mas algo a impedia de se reaproximar dele, “há uma água entre nós”, eu escutei. Então, repliquei, “uma água?”. Ela parou imediatamente de chorar e começou a rir. Em seguida, disse: “Água não! Uma mágoa, mas acho que estou molhando seu divã com meu choro, né..?”. Eu ri, depois interrompi a sessão e ela saiu rindo. Na sessão seguinte, voltou a falar do relacionamento que havia chegado ao fim por falta de comunicação entre ambos que, mesmo vivendo juntos há apenas 5 anos, pouco conversavam. Segundo ela, “a gota d’água” foi o esquecimento dele do aniversário dela. Enfim, havia realmente muitas “águas” entre eles que pareciam já estar separados por um rio, um em cada margem desse leito de águas paradas que o casamento deles havia se transformado em tão pouco tempo. Não tinham filhos por opção de ambos, pois trabalhavam muito e não queriam abrir mão da liberdade deles. Evidentemente, cada um tinha lá sua questão com seus ideais de paternidade e maternidade. Enfim, mas isso é assunto para outro artigo. Por ora, retomemos o tema da tristeza e da felicidade e de como isso é sentido dentro dos relacionamentos.
Para Freud, a felicidade é um tema individual. Segundo ele, nenhum conselho é válido e cada pessoa deve procurar, por si mesma, tornar-se feliz. Simples de dizer, mas difícil de fazer, né ? No entanto, é a mais pura verdade. Na maioria dos casos, somos nós mesmos quem nos colocamos em “maus lençóis” em todos os sentidos. No leito do desejo, os lençóis têm sempre medidas diferentes, pois cada um traz o seu “lençolzinho” particular da casa de onde vieram, com seus ideais de amor projetados nesses panos que se abrem como telas projetivas entre os amantes. Entre os lençóis que recobrem o leito do desejo e os lenços que secam os prantos dos amores desfeitos, as tempestades odiosas surgem furiosas como “as águas de março fechando o verão”, mas que também podem vir com “alguma promessa de vida”.
Inerentes a todos os modos de relações, os desentendimentos fazem parte da linguagem que funciona como um tecido de palavras e gestos que tentam recobrir os furos que não queremos ver, os nossos e os do outro. Em um relacionamento entre pessoas que dizem se amar, um novo pano começa a ser tecido. Surge, então, um novo lençol entre eles que se tornará um verdadeiro muro de lamúrias e de males entendidos promovidos por suas diferenças e pelos furos inerentes à própria linguagem. Lacan tentou abordar esse desencontro certeiro através da lógica, dizendo que “a relação sexual não existe”, ou seja, reafirmando que não há pares complementares, pois há um mundo de diferenças entre os seres falantes. Para dar um contorno poético a isso, Lacan recorre ao lindo poema de Antoine Tudal (1931-2010):
“Entre o homem e a mulher
há o amor.
Entre o homem e o amor
há um mundo.
Entre o homem e o mundo
há um muro.”
Lacan foi um psiquiatra francês que se tornou psicanalista, não só por seu entusiasmo com a clínica, mas também em função de seu interesse pela literatura e pelas artes, aproximando-se especialmente, do grupo dos surrealistas que movimentaram os cenários artísticos e literários após a Primeira Grande Guerra Mundial. Tais movimentos levaram Lacan a iniciar seus estudos sobre linguística, dentre outros campos do saber. No centro dos debates entre seus pares, Lacan já percebia haver algo da ordem de um furo estrutural, algo que se apresentava como um impossível de se fazer dizer. Futuramente, ele perceberá que a incompletude de base inerente à linguagem tem relação com um furo no saber e que isso também teria algo a ver com o mal-estar que permeia nossos corpos.
A partir de Lacan, podemos pensar na ideia de furo como “furo no saber”, estando isso aí relacionado ao que Freud chamava de castração. Justamente isso que desconhecemos em nós é o que revela nossas faltas, nossas falhas. Tal desconhecimento costuma gerar angústia, mas também pode causar desejo de saber. Não vou me prolongar aqui neste ponto, mas é importante sinalizar que nada é mais certeiro na vida do que os furos engendrados ao longo de nossas existências, desde o nascimento à morte.
Sigamos!
As tentativas de comunicação entre as pessoas quase sempre resultam em algum mal-entendido. Cada vez que isso acontece, o que se fala ao outro precisa ser ainda mais bem dito, na tentativa de contornar os furos. A vida em pares e em grupos acontece nessa eterna tentativa dos esclarecimentos. É possível que só o amor consiga sustentar esses hiatos entre momentos alegres, tristezas e hostilidades, até o momento em que algo dessa equação linguística cai e o amor sai de cena.
O luto surge em consequência desse momento em que o sujeito precisa se haver com a perda de um objeto de valor narcísico para ele ou ela, como a perda de um ideal, de um trabalho, de um lugar, ou de uma pessoa amada, ou seja, de algo que reafirmava seu amor próprio e sua existência como um ser amável e desejável. O luto é um trabalho psíquico que não deve ser apressado, nem o sujeito dopado para nada sentir, pois a tristeza é um sentimento que somente os seres humanos podem contornar com palavras e dele deslizar para outros sentimentos até que consigam fazer novos investimentos linguajeiros de amor e se permitam recomeçar um novo caminho. Se não fôssemos seres de linguagem, possivelmente morreríamos de inanição poética diante das inúmeras perdas que enfrentamos e atravessamos ao longo da vida.
Instagram: @vanisa_moret_santos