• Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?

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  • 23/jul 08:00
    Por Vanisa Moret Santos

    Dona de casa ou dona da casa? Em que hábitos habitamos?

    Uma dona de casa pode ser muitas coisas, mas será também ela dona da casa em que habita ou uma dona habitada por muitas referências de mulher cuja maior atribuição a ela designada tem sido a de cuidar e a de servir? Afinal, o que se quer de uma mulher, coincide com o que ela quer?

    Desde a Antiguidade, os papéis sociais atribuídos às mulheres giram em torno da maternidade e de outras funções afins que a localizam na figura da cuidadora, seja da própria família e do lar, seja dos outros à sua volta. Também a objetificação de seus corpos é uma herança de épocas em que as mulheres eram tratadas como meros objetos servis, fossem elas as santas recatadas do lar, as escravas, as empregadas domésticas, ou as mal’ditas mulheres da rua.

    Ao homem, foram designadas todas as expectativas de que funcionassem como provedores fortes e imbatíveis, únicos responsáveis pelo sustento da casa e da família. Papéis que, felizmente, vêm se modificando a partir de uma lenta e contínua desconstrução desse modelo. Mas, na prática, as coisas ainda continuam muito difíceis para nós, mulheres.

    Com a r’evolução dos costumes, esses ideais foram se transformando. A mulher passou a ter um protagonismo maior no mercado de trabalho, mas, infelizmente, a desigualdade de oportunidades e de equiparação salarial entre homens e mulheres ainda continua a ser uma realidade.

    O fato de termos atingido certa independência financeira não retirou de nós as expectativas de que devemos ser infalíveis em cuidarmos da casa, da família e dos filhos. Em muitos casos, as mulheres, além de terem que cuidar da casa, ainda têm que bancar as despesas e se orgulharem por isso. A figura da mulher “guerreira”, da “mãe solo, pau pra toda obra”, foi tomando conta de um discurso cínico e falsamente feminista do qual os próprios homens se valem para continuarem a explorar as mulheres.

    É importante que as mulheres sejam financeiramente independentes e que possam dividir as contas ou até sustentar uma casa quando isso se impuser como uma situação necessária. Não se trata de reclamar disso! No entanto, temos que ficar atentas quanto ao mau uso discursivo de nossas conquistas. Cada vez mais, o que vemos acontecer atualmente é uma nova espécie de fascinação das mulheres pelo ideais fálicos historicamente perseguidos pelos homens que reduzem seus desejos à satisfação de infinitas demandas de tal modo que tudo fica muito descartável e as relações cada vez mais diluídas e precárias. Se, por um lado, devemos evitar cair nas malhas do engodo do ideal romântico de relações eternas e indissolúveis, por outro lado, devemos estar advertidas sobre o que realmente queremos fazer com o que desejamos. Costumo pensar que um amor só pode se eternizar entre pausas, desde que algo aí termine e se renove todos os dias. Mas isso já é assunto para outro artigo.

    Voltemos ao ponto de nossa reflexão inicial.

    No mercado de trabalho, as mulheres vêm se destacando por sua inteligência sensível, capacidade de liderança com justiça, afetividade, praticidade, versatilidade e senso de humanidade. Provavelmente, temos mais acesso a tais características por termos sido acostumadas ao papel social de cuidar. Em função do sucesso da adequação desse modelo de mulher aos ideais do discurso performático em que nos incluímos na atualidade, temos sido elogiadas e chamadas de “guerreiras”. Desse modo, “se virar nas onze” passou a ser um ideal a ser atingido por muitas mulheres. Sem percebermos, acabamos construindo uma verdadeira prisão domiciliar, especialmente, depois do advento da Covid-19 que intensificou o trabalho on-line atrelando-o aos demais trabalhos de casa.

    Em nossos consultórios, é cada vez mais comum recebermos queixas de exaustão física e mental de mulheres executivas que trabalham em casa e que, além de sustentarem a casa, continuam a cuidar dos afazeres do lar, da família e dos filhos. Executivas ou executadas? Sim, pois não bastassem trabalhar fora e dentro de casa, as “novas mulheres guerreiras” ainda se sentem na obrigação de serem infalíveis. 

    Em meu livro, Mães faltosas crônicas e outras histórias, lançado pela editora Atos & Divãs, em 2021, abordo como essa realidade nos atinge a todas e das mais variadas formas. Ao longo das 18 histórias de ficção que trago no livro, abordo como lidamos com nossas culpas e desculpas diante de nossos desejos e como ainda estamos impregnadas das heranças simbólicas sobre os ideais a nós atribuídos desde os nossos antepassados. Além disso, o livro aborda os mais variados conflitos intergeracionais entre mães e filhas, os relacionamentos entre os pares de amor e de desamor, como lidamos com a maternidade, com o nosso sentimento de desamparado e com a novidade da conquista de nossa liberdade.

    Finalmente, é preciso que nos lembremos de que, nós mulheres, também precisamos nos desconstruir como herdeiras de um discurso machista para podermos nos libertar e nos autorizar a ocuparmos funções de liderança e destaque, termos sucesso no trabalho, podermos escolher com quem desejamos construir ou reconstruir nossas casas e sonhos ou, ainda, simplesmente fugir dos padrões a nós designados. 

    Certa vez, em uma conversa informal com uma amiga íntima, ao discutirmos esse tema, eu lhe disse:

    “Se conseguir ser dona de minhas verdades, serei um pouco mais feliz por sabê-las minhas e não dos meus vizinhos de porta.”

    Sigamos! Entre falhas e conquistas, entre tantos redesencontros, mas, enfim, já nem tão inadvertidas assim.

    @vanisamoretsantos

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