• Saúde Mental: Vamos falar sobre isso?

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  • 17/jun 13:24
    Por Vanisa Moret Santos

    “Acho que sofro de masoquismo alimentar” – O que seria isso?

    O tema das compulsões alimentares nunca esteve  tão atual em nossas clínicas, especialmente, quando associado às queixas de depressão e ansiedade como se apresentam nas falas de pacientes que nos procuram para tratarem da obesidade como consequência de uma compulsão alimentar, quase sempre, associada a um quadro de angústia que se apresenta também associada a um estado depressivo.

    A questão é muito complexa o que nos impede de fazer digressões teóricas mais precisas, mas tentarei tocar em alguns pontos importantes.

    O ato de se alimentar está ligado a uma necessidade vital que está “emãeranhada” a uma demanda de amor direcionada àquela pessoa que desempenha uma função fundamental na vida de todo ser humano recém nascido que implica na ação específica de retirar o bebê humano do seu estado de desamparo fundamental, alimentando-o não somente com leite, mas também com palavras e gestos de amor e de atenção.  

    Como simplesmente o leite não basta, é preciso que esse outro cuidador (geralmente a mãe) também possa dar provas constantes de reconhecimento da existência daquele ser faminto perante seu amor. Para tal, as pessoas que exercem a função materna seguirão envolvendo a criança em seus braços, contornando-a com seu olhar, com suas cantigas e com suas palavras. Eis aí o surgimento de um ser de linguagem, marcado por sons, palavras, demandas, desejos, sonhos, expectativas, ideais.

    Quando a mãe ou quem ocupa a função materna se ausenta por um tempo, ao perceber essa ausência, a criança chora para que o adulto cuidador saiba que ela precisa de algo, embora nem sempre seja uma sinalização de fome, pois pode ser outro tipo de desconforto: frio, calor, dor, sede, etc. O choro da criança é sua primeira forma de se expressar para o outro, sendo interpretado pelo/a cuidador/a do jeito dele/a. Por isso, o acompanhamento com pediatras é de extrema importância para orientar os pais e/ou as pessoas que cuidam da criança no sentido de minimizar certos problemas nessas interpretações.

    Ao longo dos primeiros meses, a mãe ou quem ocupa esse lugar, já terá desenvolvido o seu “manhês” e a criança responderá a essa língua materna que surge entre ela e os familiares que ajudam em seus cuidados. Mesmo sem falar correntemente, a criança entende “tudo” à sua volta, absorve, reproduz, e responde às demandas e expectativas do outro para continuar a ser amada e reconhecida. É esse o momento real e fundante do narcisismo da criança (do seu eu e de seus ideais) em que a interação com as pessoas cuidadoras, em especial aquelas que representem as figuras parentais, marcam certos padrões simbólicos e imaginários importantes, gerando modelos que serão repetidos ao longo da vida. Dentro desse contexto, a forma como a criança foi alimentada (com comida e amor), seja com excesso, seja com escassez, seja com comidas saudáveis ou produtos alimentícios, seja em um ambiente carregado de tensões, ou associado a certas obrigações, enfim, todas essas situações são gravadas em seu psiquismo e associadas a certas emoções. Enfim, tudo isso contribui para que uma compensação afetiva possa se ligar ao ato de se alimentar, seja pela escassez (anorexia), seja pelo excesso (bulimia e obesidade). O melhor modelo possível seria aquele que valoriza os espaços de tempo entre a fome e a ingestão das chamadas, “comidas de verdade” que saciam e aliviam as tensões sem maltratarem o corpo e a alma do sujeito. 

    Há muitos estudos sérios que associam a droga-adição à compulsão alimentar e quase todas essas pesquisas esbarram em um mesmo ponto que é o da compensação afetiva através da comida para que o sujeito se sinta menos angustiado e deprimido. Não vou me alongar sobre isso, mas compartilhar um breve momento em minha clínica.

    Faz uns anos, tratei de um analisante adulto que sofria as consequências do peso das palavras sobre seu corpo e sua mente. Certa vez, já depois de muito tempo de análise, ele disse algo que foi revolucionário em seu percurso: “(…) uso a comida como uma droga, sei de tudo o que me faz mal, sei quando passo do ponto, mas acabo extrapolando, mesmo assim”. Ao ser indagado sobre o que ele pensava disso, respondeu: “Acho que sofro de masoquismo alimentar(…)”.  Em seguida, eu fiz uma espécie de chiste, “Sim, elementar, meu caro, elementar, mas o que seria isso…?” Por muitos meses, ele voltaria a esse ponto de interseção entre o “elementar e o alimentar”, até começar uma mudança radical em seus hábitos diários. Aderiu ao  tratamento com sua nutricionista, retomou práticas de esportes que ele tinha abandonado, ingressou em uma academia, dentre outros novos hábitos. Confesso que aprendi um monte de coisas com esse analisante, inclusive sobre nutrição e neurolinguística, campos de pesquisa a que passou a se dedicar com seriedade. Em uma de suas últimas sessões, o analisante, animado com seu corpo “sarado” e cheio de disposição pra realizar projetos de vida me disse que não voltaria mais, mas estava pensando em estudar psicanálise porque a neurolinguística tinha certos limites.  Disse-me ele:

    “(…) quero estudar psicanálise pra tratar das pessoas. Aí eu volto, doutora, porque tratar da cabeça dos outros é coisa séria (…)” 

    O que pude aprender com esse caso e com alguns outros que acompanhei é que não somente o corpo físico fica mais leve e jovial, mais ágil e harmônico, a forma de se expressar pelas palavras também muda. Ou seja, quando o sujeito se autoriza a se tratar melhor, ele trata o mundo à sua volta de um jeito mais leve. O corte significante sobre o gozo masoquista é cirúrgico e tem efeitos reais.

    Não adiante fazer dietas loucas, procedimentos invasivos, tomar remédios se o sujeito não acessar seu “masoquismo alimentar”. Elementar? Sim, mas cada um acessará sua melhor versão em seu tempo e do seu jeito. Isso que muitas vezes chamamos de maus hábitos ou de vícios, esses modelos que nos habitam podem ser desalojados e, finalmente, descartados. 

    Para mudar de verdade, é preciso saber reconhecer o que é “comida de verdade”. Certamente, uma vez mais leve, o sujeito poderá se desfazer das roupas que já não lhe cabem mais e escolher o que quiser, dentro de seu próprio estilo.

    Por: Vanisa Moret Santos

    Instagram: @vanisamoretsantos

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