‘Sandman’ inovou e surpreendeu nos quadrinhos antes de virar série
Divulgado há alguns dias, o trailer do seriado Sandman, que estreia na Netflix em 5 de agosto, provocou rebuliço nos fãs. Trata-se da adaptação de uma das séries mais revolucionárias dos quadrinhos norte-americanos, e seu caminho envolve muitas reinvenções e até confusões (por exemplo, o nome do personagem principal não é Sandman, mas Sonho) antes de chegar na HQ que angariou uma legião de leitores.
O seriado se inspira na revista Sandman, publicada mensalmente pela DC Comics entre 1989 e 1996 – com algumas edições especiais durante este período e depois. O roteirista de todas estas histórias e a mente por trás do conceito da saga é o britânico Neil Gaiman, que começou a carreira como jornalista e depois migrou para quadrinhos e literatura.
A história de Sandman na DC Comics, entretanto, precede em décadas o nascimento de Gaiman, em 1960. Houve três super-heróis com este mesmo codinome antes de o britânico começar a trabalhar para a editora.
Quando o Superman foi criado, em 1938, inaugurou-se uma “Era de Ouro” nos quadrinhos norte-americanos: a explosão do gênero dos super-heróis. Em 1940, surgiu um milionário com preocupações sociais que, sem poderes mas com muito dinheiro, usava um traje bizarro à noite para combater o crime. Embora lembrasse muito o Batman, este herói era o Sandman – a primeira versão dele na DC. Seu codinome refletia ao Sandman do folclore anglo-saxão, uma entidade poderosa que leva sonhos (ou pesadelos) às pessoas. Esta versão do Sandman durou pouco tempo e o nome ficou esquecido por décadas.
O Sandman criado nos anos 70 tinha apenas duas coisas em comum com o original: o codinome e o fato de ser um super-herói. No mais, morava em uma Dimensão dos Sonhos e atuava, como muitos poderes, entre pesadelos e reinos fantásticos. Este personagem chegou a ter um sucessor, o terceiro Sandman, mas também não durou muito.
Entra Neil Gaiman
O contexto é importante para mostrar o quanto o primeiro número da revista mensal Sandman, agora escrita por Neil Gaiman, surpreendeu ao ser lançada em 1989. Era uma revista da DC, editora da Liga da Justiça, e o título fazia menção a super-heróis coloridos. Podia-se esperar heróis, vilões, identidades secretas e batalhas épicas – e não veio nada disso.
Mês após mês, Gaiman e os artistas envolvidos entregaram histórias que iam do terror à fantasia. Saem de cena os uniformes, poderes e planos secretos e entram mitologia, horror sem filtros, lirismo e citações eruditas – o título da primeira saga é homenagem a Chopin. O leitor foi pego no contrapé.
O protagonista de Sandman é Sonho, uma espécie de entidade imortal muito mais antiga e poderosa que a humanidade. As tarefas – e dificuldades – particulares de Sonho envolvem, como seu nome diz, envolvem o mundo onírico para onde as criaturas vivas vão quando não estão despertas.
Gaiman deu um jeito de amarrar o início de sua série às versões anteriores de Sandman na DC Comics. E foi muito mais além. Se o protagonista é uma criatura imortal e sua matéria-prima são os sonhos, qualquer tempo histórico e local podem servir de base. Assim, a Grécia Antiga recebe a fábula A Canção de Orpheus, inspirada na mitologia, enquanto uma Bagdá de milênios atrás é palco da bela história Ramadã.
Nos oito anos em que foi inicialmente publicada, a série ganhou o Eisner Awards, o Oscar dos quadrinhos norte-americanos, 19 vezes, em diferentes categorias – a revista foi eleita a melhor série em três anos, e Neil Gaiman venceu por quatro vezes como melhor roteirista. Sucesso de público, “Sandman” também é periodicamente retomado em edições especiais, como minisséries ou graphic novels – e novos Eisner Awards foram conquistados aí.
Não é à toa que o trailer provocou tanto burburinho. Se, criada sem expectativas a partir de personagens obscuros, Sandman foi tão longe, seus fãs podem sonhar que a Netflix consiga levar um pouco de seu brilho para o audiovisual.