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  • 24/04/2021 08:00
    Por Gilberto Amendola / Estadão

    O artista de circo é um otimista por vocação. A natureza itinerante do trabalho, os perrengues e os riscos nunca foram um obstáculo para quem vive do picadeiro. Por isso, a história a seguir é mais sobre esperança, força e companheirismo do que sobre a tragédia pandêmica que fechou as lonas e bilheterias da cidade.

    “Respeitável público”, repetiu Hudson Rocha, o palhaço Kuxixo, tataraneto do palhaço Polydoro (José Ferreira Polydoro – um dos pioneiros do circo brasileiro), no picadeiro vazio do circo Ilusion (montado em frente ao sambódromo do Anhembi). A voz de Kuxixo ecoou por uma plateia vazia, ricocheteou por tábuas e objetos cênicos, até se transformar em uma reflexão. “O artista de circo se alimenta do aplauso. Temos fome de aplauso. Nós vivemos de gente, vivemos da presença das pessoas ao nosso redor”, afirmou Kuxixo.

    Não à toa, o coronavírus mudou o cotidiano e a rotina do circo, atingindo de forma implacável os artistas. “No ano passado, no início da pandemia, tínhamos acabado de chegar com o circo a Taipas (região no noroeste de São Paulo). Nosso primeiro final de semana foi muito bom – o que indicava que aquela seria uma ótima temporada. Estávamos cheios de esperança”, lembrou Kuxixo.

    Mas o “zunzunzum” sobre a covid começou a acender um sinal vermelho entre os artistas. “Parou tudo. Tivemos que interromper nossa temporada. A pandemia pegou a arte em cheio. O circo, a mãe de todas as artes, é uma das que mais vêm sofrendo. Vivemos de bilheteria, não tem espetáculo, não tem dinheiro”, disse o palhaço.

    Como, então, estão sobrevivendo os palhaços, trapezistas, equilibristas, mágicos e outros? Claro, nesse período, alguns projetos online, editais e programas de transferência direta de recursos foram acessados por uma parte deste contingente de artistas – que, segundo o Portal Brasileiro da Dados Abertos, estariam espalhados por 651 circos pelo País.

    “O problema é que, quando ganho um edital, um projeto, outros tantos deixam de ganhar. É preciso uma ação global para toda a categoria”, argumentou Kuxixo.

    Então, a sobrevivência da maioria dos artistas circenses depende das próprias forças. Muitos estão temporariamente vivendo como ambulantes – e podem ser encontrados pelas ruas, vestidos de palhaço, vendendo brinquedos e balões (principalmente aqueles animais feitos com balões entrelaçados).

    Além disso, a experiência com comida de circo é um fator importante. Hoje, profissionais do circo também estão vendendo algodão-doce, pipoca, maçã do amor, biscoito de polvilho e tudo aquilo que faz parte do universo gastronômico onde vivem.

    O trapezista Jhonatan Cáceres (e a família, a mulher, também trapezista, Deise Olivares, e a filha de 5 meses, a Milena) é um dos que estão sobrevivendo como ambulante no momento. Em alguns dias da semana, ele carrega o próprio carro com o que for possível vender e sai pela cidade.

    Mas a trajetória de Cáceres apresenta uma outra característica marcante da comunidade de circo: a união. Com a pandemia e o fechamento temporário do circo em que trabalhava no Rio de Janeiro, o trapezista caiu na estrada.

    Ao chegar a São Paulo, estacionou o seu trailer no terreno em que hoje está montado o circo Ilusion (ao lado do sambódromo). “Fui muito bem-recebido. O artista de circo é acolhedor. Mesmo não fazendo parte da trupe, pude estacionar minha casa aqui”, contou. Além de Cáceres, outras duas famílias moram hoje no terreno do circo – uma tradição que tem sido muito útil em tempos de dinheiro curto para coisas básicas, como o aluguel, por exemplo.

    O equilibrista Fabio Stevanovich tem aproveitado os dias vazios de circo fechado para treinar e treinar seus números. “Apesar da pandemia, treino de 5 a 6 horas por dia. Não paro. Minha maior preocupação no momento não é com o dinheiro. Ele vai ser consequência do meu trabalho. O que me dói é a falta de público e a impossibilidade de apresentar minha arte para as pessoas”, lembrou.

    Na mesma linha, vai o especialista em globo da morte Dione Meirelles. “Eu vivo do globo da morte. O globo da morte é a minha vida. O que representa a morte é esse vírus que nos impede de trabalhar”, comenta. “Agora, vivo de vender maçã do amor, biscoito… e também das pessoas e de ONGs que acabam nos ajudando”, completou.

    Auxílio

    O grupo conhecido como Anjos da Leste tem feito entregas de cestas básicas em circos por São Paulo. “A gente já atua em comunidades carentes, mas notamos a situação dos circos, dos artistas que vivem no próprio espaço ou que estão sendo dispensados por falta de espetáculos. A pandemia tem sido muito dura com essas pessoas. Começamos com alguns circos da zona leste, mas estamos fazendo um levantamento para entrega de mais cestas básicas”, conta a cofundadora do projeto, Mayra Alegro. Quem quiser colaborar com o grupo pode procurá-lo no Instagram(@anjosdaleste).

    Verônica Tamaoki, coordenadora do Centro de Memória do Circo, ligado à Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo, fala da importância de preservar a história do circo. “Mesmo com todos os livros e pesquisas, é uma história basicamente oral. No Centro de Memória, trabalhamos pela preservação dessa cultura em um momento tão delicado como agora”, disse. No dia 24 de maio, o Centro de Memória do Circo também vai lançar o Programa Emergencial da Memória do Circo Brasileiro, que consiste no registro de entrevistas realizadas por artistas circenses.

    Para o segundo semestre, está prevista a realização do FIC (Festival Internacional do Circo – com a colaboração da Associação dos Amigos do Centro de Memória do Circo e apoio da Secretaria de Cultura). A Secretaria também lançou, em fevereiro, a 6ª edição do Fomento ao Circo, com orçamento de R$ 3,6 milhões. As inscrições já foram encerradas.

    A Volta

    O palhaço Kuxixo, que, segundo ele mesmo, é sempre o primeiro a chegar e o último a sair do picadeiro, avisa que tem esperança de retomar as atividades até o Dia das Mães – com promoções e novidades. “Minha preocupação como artista de circo não é morrer: é sobreviver. É da natureza do circo renascer, retomar, recomeçar. A vida do circo é recomeçar sempre, recomeçar em cada praça, em cada cidade. E é isso que vamos fazer assim que for possível. Vamos recomeçar mais uma vez”, entusiasma-se Kuxixo que, agarrado à lona amarela que protege o seu picadeiro, repetiu: “O circo vai responder. O respeitável público quer sair de novo. O circo não vai ser derrubado, o circo precisa ser tombado”.

    As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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