Roberto Abdenur: Presença do Brasil em Moscou sinaliza simpatia à posição russa
O presidente Jair Bolsonaro partiu nesta segunda-feira, 14, em uma viagem à Rússia em meio à pior crise militar mundial desde o fim da Guerra Fria. Segundo Roberto Abdenur, ex-embaixador do Brasil nos EUA e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri), mesmo que o presidente não declare uma posição sobre a crise na Ucrânia, a sua presença em Moscou neste momento sinaliza simpatia às posições russas.
Desde novembro, a Rússia está em uma escalada com os países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na fronteira com a Ucrânia. Segundo o governo dos Estados Unidos, uma invasão russa pode acontecer a qualquer momento, em especial nesta semana – quando Bolsonaro ainda estará na região.
Logo em seguida, o brasileiro viajará para a Hungria, outra viagem vista como inoportuna, segundo o embaixador. O líder Viktor Orbán é considerado um dos últimos líderes da extrema-direita ainda no poder e tem orgulho de se definir um “iliberal”. Em abril o país passará por eleições, em que Orbán corre sérios riscos de perder para uma “frente ampla” montada contra ele.
Confira a seguir os principais trechos da entrevista que Roberto Abdenur concedeu ao Estadão:
O que representa essa visita de Bolsonaro a Vladimir Putin e a Viktor Orbán neste momento?
Roberto Abdenur: Essa visita ao Putin é ao mesmo tempo inoportuna, descabida e contraproducente. É inoportuna porque estamos vivendo agora a crise internacional mais grave desde a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, em que o mundo escapou por pouco de uma devastadora guerra nuclear.
Há um dado relevante do ponto de vista militar que é preciso ter em conta: Se a Rússia for invadir a Ucrânia, tende a fazê-lo até o início de março no mais tardar. Porque o terreno lá do leste da Ucrânia está congelado no inverno, o que facilita o deslocamento de tanques, blindados e tropas. Com a primavera a partir de março, o gelo vira lama e qualquer operação terrestre fica muito mais complicada. Então, o Bolsonaro vai estar em Moscou no auge da crise.
A Rússia continua a movimentar tropas, e os americanos, ingleses e outros estão mandando seus nacionais saírem da Ucrânia, também as famílias e alguns funcionários de suas embaixadas. Não estão fechando, mas estão reduzindo o pessoal pelo temor dos riscos físicos que as pessoas correm numa hora dessas. A situação é muito grave.
Mesmo que o Bolsonaro não dê uma única palavra em apoio à postura russa, a simples presença do presidente do Brasil em Moscou neste momento – será talvez a única visita de um país que não está na esfera de influência da Rússia – sinaliza, ainda que muito indiretamente, uma certa simpatia pela Rússia e portanto pelas posições que ela está tomando neste momento. Isso será muito mal visto, não só nos Estados Unidos, mas pelos 30 países europeus que constituem a Otan e também a União Europeia. Por isso será contraproducente.
O que começou como uma troca de acusações, em novembro do ano passado, evoluiu para uma crise internacional com mobilização de tropas e de esforços diplomáticos.
O Brasil já se vê isolado dos seus outros parceiros, como Alemanha, França e o próprio Estados Unidos de Biden. Essa visita neste momento pode piorar ainda mais a imagem do Brasil no mundo?
A presença de Bolsonaro em Moscou é muito ruim porque dá uma sinalização que será vista muito negativamente pelos EUA e pelas grandes democracias europeias com as quais o Brasil já está queimado. O Bolsonaro queimou as pontes com a [Angela] Merkel da Alemanha, com o [Emmanuel] Macron da França, com Portugal, com Itália, etc.
Além disso, há um elemento de contradição com outros elementos brasileiros. O [Donald] Trump declarou o Brasil um parceiro estratégico extra-Otan. Eu entendo que aos militares brasileiros interessa uma aproximação com a Otan. Isso pode fortalecer e viabilizar a modernização das forças armadas.
E mais, o Putin já ameaçou publicamente instalar uma presença militar em Cuba e na Venezuela. Ora, esse é o espaço geopolítico do Brasil, isso é muito ruim para a segurança do Brasil. Porque constitui um foco, traz pra nossa fronteira, pras nossas proximidades, um foco de tensão que vem 10.000, 20.000 quilômetros de longe, da Europa pra cá. Os americanos naturalmente reagirão a isso.
Não vou dizer que vamos ter uma repetição da crise de 62, mas se houver uma presença duradoura de militar russo em Cuba e na Venezuela, haverá novas tensões nessa região, em prejuízo aos interesses do Brasil. Por isso que eu digo que, além de ser inoportuna, a visita é contraproducente, porque vai contra os nossos interesses junto à Otan, e contra o nosso interesse primordial em preservar uma região de paz e segurança no Atlântico Sul.
Além do que, o Bolsonaro é um cara muito fraco. O Bolsonaro jamais dirá ao Putin ‘não venha instalar bases na proximidade do Brasil que nós não queremos’, ele não fará isso. Implicitamente, por omissão, abrirá campo para que a Rússia venha fazer isso. Eu acho improvável que a Rússia faça, mas se o Putin disse publicamente, é algo que tem que ser levado a sério.
E no caso da Hungria, o senhor também considera uma viagem inoportuna?
A ida à Hungria também pega muito mal, porque os dois regimes autoritários na Europa, Hungria e Polônia, estão às turras com a União Europeia em seu conjunto. Justamente pelas ameaças, pela erosão da democracia que vem ocorrendo sistematicamente nesses países.
O primeiro-ministro húngaro controla o Judiciário, a imprensa, sufoca a oposição, reprime, viola os direitos humanos, tem uma pregação racista e xenófoba. O Bolsonaro, ao ir à Hungria, piora ainda mais a nossa já horrível relação com as democracias europeias, sobretudo as duas maiores, França e Alemanha, e do outro lado a Inglaterra.
É horrível porque ele fará um ato de fé na mais radical ideologia de extrema-direita. Lembre-se que o Orbán veio à posse do Bolsonaro, foi um dos poucos, senão o único, líderes da Europa que veio. Porque ele viu desde cedo no Bolsonaro, um irmão de alma na extrema-direita internacional. Em suma, a ida de Bolsonaro a Moscou e Budapeste é diplomaticamente um erro gravíssimo..
O governo justifica a viagem neste momento como uma oportunidade de ‘estreitar os laços de cooperação, amizade e relações bilaterais’. É de fato importante estreitarmos os laços com esses dois países?
A relação com a Hungria é mínima. Com a Rússia sim, nós temos um comércio, embora não extraordinário. Eu sou favorável que o Brasil reforce ao máximo as suas relações com a Rússia, porque é um país importante, um parceiro nosso no Brics. Embora não seja um grande investidor, é um país que tem empresas que podem atuar no Brasil, na área de energia, petróleo e gás.
É um país com o qual podemos ter intercâmbio tecnológico em múltiplos setores. É uma nação avançada em questões de saúde pública, indústria farmacêutica, tecnologia especial por exemplo. Mas não é o momento.
Uma visita do presidente brasileiro a Moscou não deve se dar neste momento de uma crise internacional tão aguda. Deve aguardar uma oportunidade em que a crise tenha sido superada de um jeito ou de outro, e uma visita a Moscou não seja vista pelo resto da comunidade internacional como um gesto favorável à Rússia.