• Revolução Cristã: Amar os inimigos!

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  • 20/02/2022 23:00
    Por Mons. José Maria Pereira

    O Evangelho deste domingo (Lc 6, 27-38) contém uma das palavras mais típicas e fortes da pregação de Jesus: “Amai os vossos inimigos” (Lc 6, 27). É tirada do Evangelho de Lucas, mas se encontra também no Evangelho de Mateus (5,44), no contexto do discurso programático que se abre com as famosas “Bem – Aventuranças”. Jesus pronunciou-o na Galileia, no início da sua vida pública: quase uma “declaração” apresentada a todos, com a qual Ele pede a adesão dos seus discípulos, propondo-lhes em termos radicais o seu modelo de vida. Mas qual é o sentido desta sua palavra? Por que Jesus pede para amar os próprios inimigos, isto é, um amor que excede as capacidades humanas? O amor ao inimigo constitui o núcleo da “revolução cristã”, uma revolução baseada não em estratégias de poder econômico, político ou midiático. A revolução do amor, um amor que definitivamente não se apoia nos recursos humanos, mas é dom de Deus que se obtém confiando unicamente e sem reservas na sua bondade misericordiosa. Eis a novidade do Evangelho, que muda o mundo sem fazer rumor. Eis o heroísmo dos “pequenos”, que creem no amor de Deus e o difundem até à custa da vida.

    Na realidade, a proposta de Cristo é realista, pois considera que no mundo existe demasiada violência, demasiada injustiça, e portanto, não se pode superar esta situação exceto se lhe contrapuser um algo mais de amor, um algo mais de bondade. Este “algo mais” vem de Deus: é a sua misericórdia, que se fez carne em Jesus e que sozinha pode “inclinar” o mundo do mal para o bem, a partir daquele pequeno e decisivo “mundo” que é o coração do homem.  

    Para isso o Evangelho nos convida a ser magnânimos, a ter um coração grande, como o de Cristo. Manda-nos a bendizer aqueles que nos amaldiçoam, orar pelos que nos injuriam…, praticar o bem sem esperar nada em troca, ser compassivos como Deus é compassivo, perdoar a todos, ser generosos sem calculismos. E termina com estas palavras do Senhor: Dai e vos será dado. Uma boa medida, calcada, sacudida, transbordante será colocada no vosso colo. E alerta-nos: Com a mesma medida com que medirdes os outros, vós também sereis medidos (Lc 6, 38).

    A virtude da magnanimidade, muito relacionada com a virtude da fortaleza, consiste na disposição de realizar coisas grandes, e São Tomás chama-a “ornato de todas as virtudes”. É uma disposição que acompanha sempre uma vida santa.

    O magnânimo (tem alma grande) propõe-se ideais altos e não se encolhe perante os obstáculos, as críticas ou os desprezos, quando é necessário enfrentá-los por uma causa elevada. Não se deixa intimidar de forma alguma pelos respeitos humanos e pelas murmurações; importa-lhe muito mais a verdade do que as opiniões, frequentemente falsas e parciais.

    A grandeza de alma demonstra-se também pela disposição de perdoar o que quer que seja das pessoas próximas ou afastadas. Não é próprio do cristão ir pelo mundo afora com uma lista de agravos no coração, com rancores e recordações que lhe amesquinham o ânimo e o incapacitam para os ideais humanos e divinos a que o Senhor nos chama.

    Assim como Deus está disposto a perdoar tudo de todos, a nossa capacidade de perdoar não pode ter limites, nem pelo número de vezes, nem pela magnitude da ofensa, nem pelas pessoas das quais nos advém a suposta injúria: “Nada nos assemelha tanto a Deus como estarmos sempre dispostos a perdoar. Na Cruz, Jesus cumpria o que havia ensinado: Pai, perdoa-lhes. E imediatamente a desculpa: porque não sabem o que fazem (Lc 23, 34). São palavras que mostram a grandeza de alma da sua Humanidade Santíssima. E ainda lemos no trecho do Evangelho (Lc 6, 27-28): Amai os vossos inimigos…, orai pelos que vos caluniam.

    Vamos nos concentrar num ponto importante do discurso de Jesus: “Não julgueis, e não sereis julgados; não condeneis, e não sereis condenados; perdoai, e sereis perdoados” ( Lc 6, 37 ). O sentido não é: não julgueis os homens e assim os homens não vos julgarão; mas antes: não julgueis e não condeneis o irmão e assim Deus não vos condenará.

    Quem és tu para julgar um irmão? Somente Deus pode julgar porque Ele conhece os segredos do coração, os “porquês”, as intenções e os objetivos de uma ação. Mas nós o que sabemos daquilo que se passa no coração da pessoa quando faz uma determinada ação? O que sabemos sobre os condicionamentos que influem nessa ação, sobre os meandros de suas intenções? Querer julgar, para nós, é realmente uma operação assaz arriscada, é como lançar uma pedra de olhos fechados sem saber a quem irá atingir: nós nos expomos a ser injustos, impiedosos, unilaterais. Basta olhar para nós: como é difícil julgar a nós mesmos e quantas trevas envolvem nosso pensamento, para entender que é totalmente impossível descer nas profundidades de outra existência, em seu passado, em seu presente, na dor que experimentou…

    Diz São Paulo: “Ó homem, tu que julgas os que praticam tais coisas e, no entanto, as fazes também tu, pensas que escaparás ao julgamento de Deus?” (Rm 2, 3). O motivo aduzido por São Paulo é: Tu que julgas fazes as mesmas coisas! É um traço característico da psicologia humana julgar e condenar nos outros, sobretudo, o que nos desagrada em nós mesmos, mas que não ousamos enfrentar. O avarento condena a avareza; o sensual vê, em tudo, pecados de luxúria; o orgulhoso só vê nos outros pecados de soberba. Projeta-se o próprio mal e a própria intenção deturpada nos outros, iludindo-nos, assim, de nos libertar de modo indolor. Mas isto é uma mentira e uma hipocrisia; é uma forma de alienação (alienação de nosso “eu” doentio): Hipócrita –diz Jesus quando assim me comporto -, tira primeiro a trave do teu olho e depois o cisco do olho de teu irmão! (Mt 7, 5). Há pessoas que se assemelham a juízes em sessão permanente: de manhã levantam e sentam no tribunal, permanecendo aí o dia todo emitindo sentenças. Ouvem uma notícia e já têm um julgamento; chega uma pessoa e, apenas sai, lhe jogam nas costas um julgamento.

    Mais perto de nós, nos relacionamentos cotidianos, na família e no ambiente de trabalho: não julgar, não condenar! O melhor é falar, expressar com clareza o próprio desacordo, uma desaprovação. Jesus condena o juízo, não a correção; quando você corrige o irmão lhe faz dois favores: mostra que ele é capaz de aceitar a correção e lhe dá uma possibilidade de defesa. Isto não humilha a pessoa, mas lhe dá a certeza de que é valorizada, considerada capaz de aceitar uma crítica e de melhorar.

    Em tudo é importante que cultivemos a virtude da magnanimidade, muito próxima da virtude da fortaleza! Ser magnânimo! Ter alma grande!

    Jesus sempre pediu esta grandeza de alma aos seus. O primeiro mártir, Santo Estêvão, morrerá pedindo perdão para aqueles que o matam (At 7, 60). E nós não saberemos perdoar as pequenezes de cada dia? E se alguma vez chega a difamação ou a calúnia, não saberemos aproveitar a ocasião para oferecer a Deus algo tão valioso? Melhor ainda seria se, à imitação dos santos, nem sequer chegássemos a ter que perdoar – por nunca nos sentirmos ofendidos.

    Santa Teresa dizia: “Não deixeis que a vossa alma e o vosso ânimo se encolham, porque poderão perder-se muitos bens… Não deixeis que a vossa alma se esconda num canto, porque, ao invés de caminhar para a santidade, terá muitas outras imperfeições mais” (Caminho de Perfeição, 72, 1).

    A magnanimidade dilata o coração e torna-o mais jovem, com maior capacidade de amar. É virtude que é fruto de um íntimo relacionamento com Jesus Cristo. Uma vida interior rica e exigente, repleta de amor, sempre se faz acompanhar de uma disposição de empreender grandes tarefas por Deus. É uma atitude habitual que se baseia na humildade e que traz consigo “uma esperança forte e inquebrantável, uma confiança quase provocativa e a calma perfeita de um coração sem medo”, que “não se escraviza perante ninguém: é servo unicamente de Deus” (J. Pieper, As Virtudes Fundamentais).

    O magnânimo (é generoso) atreve-se ao que é grande porque sabe que o dom da Graça eleva o homem a tarefas que estão acima da sua natureza, e as suas ações ganham então uma eficácia divina: esse homem apoia-se em Deus, que é poderoso para fazer nascer das pedras filhos de Abraão (Mt 3, 9); e é audaz nas suas iniciativas apostólicas, porque é consciente de que o Espírito Santo se serve da palavra do homem como instrumento, mas que é Ele quem aperfeiçoa a obra (Cf. São Tomás, Suma Teológica, 2 – 2, q. 171, a. 2). Caminha e trabalha com a segurança de quem sabe que toda a eficácia procede de Deus, pois, é Ele quem dá o crescimento (1 Cor 3, 7).

    A Virgem Maria nos conceda a grandeza de alma que Ela teve nas suas relações com Deus e com os irmãos. Dai e vos será dado… Não nos apouquemos, não nos encolhamos. Jesus presencia a nossa vida!

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