• Resgatar a democracia face à ameaça de golpe

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  • 25/09/2022 09:00
    Por Leonardo Boff

    Ouvimos com frequência as ameaças de golpe à democracia por parte do atual presidente. Ele realizou aquilo que Aristóteles chama de kakistocracia: “a democracia dos piores”. Cercou-se de milicianos, colou nos cargos públicos algumas dezenas de militares de espírito autoritário, ligados ainda à revolução empresarial-militar de 1964, fez aliança com os políticos do Centrão que, ao invés de representar os interesses gerais do povo, vivem de privilégios e de propinas e fazem da política uma profissão para o próprio enriquecimento.

    Não vi melhor descrição realística de nossa democracia do que esta, de meu colega de estudos, brilhante inteligência, Pedro Demo:

    Em sua Introdução à sociologia (2002) diz enfaticamente: “Nossa democracia é encenação nacional de hipocrisia refinada, repleta de leis “bonitas”, mas feitas sempre, em última instância, pela elite dominante para que ela sirva do começo até o fim. Político é gente que se caracteriza por ganhar bem, trabalhar pouco, fazer negociatas, empregar parentes e apaniguados, enriquecer-se às custas dos cofres públicos e entrar no mercado por cima…Se ligássemos democracia com justiça social, nossa democracia seria sua própria negação.”(p.330.333).

    Logicamente, há políticos honrados, éticos e organicamente articulados com suas bases e com os movimentos sociais e com o povo em geral. Mas, em sua maioria, os políticos traem o clássico ideal de Max Weber, a política como missão em vista do bem comum e não como profissão em vista do bem individual.

    Já há decênios estamos discutindo e procurando enriquecer o ideal da democracia: da representativa, passar à democracia participativa e popular, à democracia econômica, à democracia comunitária dos andinos (do bien vivir), à democracia sem fim, à democracia ecológico-social e, por fim, à uma democracia planetária. 

    Tudo isso se esfumou face aos ataques frequentes do atual presidente. Este pertence, primeiramente, ao âmbito da psiquiatria e, secundariamente, da política. Temos a ver com alguém que não sabe fazer política, pois trata os adversários como inimigos a serem abatidos (recordemos o que disse na campanha: há que se eliminar 30 mil progressistas). Descaradamente afirma ter sido um erro da revolução de 1964 torturar as pessoas quando deveria tê-las matado, defende torturadores, admira Hitler e Pinochet. Em outras palavras, é alguém psiquiatricamente tomado pela pulsão de morte, o que ficou claro na forma irresponsável com que cuidou do Covid-19. 

    Ao contrário, a política em regime democrático de direito supõe a diversidade de projetos e de ideias, as divergências que tornam o outro um adversário mas jamais um inimigo. Isso tudo o presidente não conhece. Nem nos refiramos à falta de decoro que a alta dignidade do cargo exige, comportando-se de forma boçal e envergonhando o país quando viaja ao estrangeiro.

    Somos obrigados a defender a democracia mínima, a representativa. Temos que recordar o mínimo do mínimo de  toda democracia que é a igualdade à luz da qual nenhum privilégio se justifica. O outro é um cidadão igual a mim, um semelhante com os mesmos direitos e deveres. Essa igualdade básica funda a justiça societária que deve sempre ser efetivada em todas as instituições e que impede ou limita sua concretização. Esse é um desafio imenso, esse da desigualdade, herdeiros que somos de uma sociedade da Casa-Grande e da senzala dos escravizados, caracterizada exatamente por privilégios e negação de todos os direitos aos seus subordinados.

    Mesmo assim, temos que garantir um estado de direito democrático contra as mais diferentes motivações que o presidente inventa para recusar a segurança das urnas, de não aceitar uma derrota eleitoral, sinalizada pelas pesquisas, como a Datafolha  à  qual ele contrapõe a imaginosa Datapovo.

    A atual eleição representa um verdadeiro plebiscito: que forma de Brasil nós almejamos? Que tipo de presidente queremos? Por todo o desmonte que realizou durante a sua gestão, trata-se do enfrentamento da civilização com a barbárie. Se reeleito conduzirá o país a situações obscuras do passado há muito superadas pela modernidade. É tão obtuso e inimigo do desenvolvimento necessário que combate diretamente à ciência, desmonta a educação e desregulariza a proteção da Amazônia.

    A presente situação representa um desafio a todos os candidatos, pouco importa sua filiação partidária: fazer uma declaração clara e pública em defesa da democracia. Diria mais, seria um gesto de patriotismo, colocando a nação acima dos interesses partidários e pessoais, se aqueles candidatos que, pelas pesquisas, claramente, não têm chance de vitória ou de ir ao segundo turno, proclamassem apoio àquele que melhor se situa em termos eleitorais e que mostra, como já mostrou, resgatar a democracia e atender aos milhões de famintos e outros milhões de deserdados.

    Temos que mostrar a nós mesmos e ao mundo que há gente de bem, que é solidária com as vítimas do Covid-19, nomeadamente, o MST, que continua fazendo cultura e pesquisa. Este será um legado sagrado para que todos nunca se esqueçam de que, mesmo em condições adversas, existiu bondade, inteligência, cuidado, solidariedade e refinamento do espírito.

    Pessoalmente me é incômodo escrever sobre essa democracia mínima, quando tenho me engajado por uma democracia socioecológica. Face aos riscos que teremos que enfrentar, especialmente, do aquecimento global e seus efeitos danosos, cabe à nossa geração decidir se quer ainda continuar sobre esse planeta ou se tolerará destruir-se  a si mesma e grande parte da biosfera. A Terra, no entanto, continuará, mas sem nós.

    Leonardo Boff é teólogo,filósofo e escreveu: Cuidar da Terra-proteger a vida:como evitar o fim do mundo, Record 2010; a sair A busca da justa medida: como equilibrar o planeta Terra, pela Vozes.

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