• Réquiem para uma saudade

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  • 25/08/2019 07:00

    A discrição é uma virtude que carrega consigo o silêncio como escudo para proteger a privacidade. Caminhar por este mundo com passos mansos, sem fazer alarde, consiste em um ato que encontra, na simplicidade, um ponto de equilíbrio, porque a consciência do despojamento prevalece.  

    A arte de servir requer uma dose farta de humildade, uma vez que o outro é que ganha mais destaque. Contudo, quem serve fica com a melhor parte: a gratidão. 

    Cansado de ver tantas pessoas se exibindo como campeãs em tudo, contando vantagens, sentindo-se no direito de fazer justiça com as próprias mãos, posando de herói, querendo combater a violência com vingança, senti saudade de um amigo que partiu a pouco, que muito me ensinou com a sua maneira de ser. Desprendido, sem vaidades, encontrou no altruísmo uma forma de viver a serviço do Bem. Eu o conheci quando ele atuava na escola pública em que leciono. Prestava um serviço voluntário nos cursos técnicos. Além de auxiliar os alunos nas disciplinas, dava a eles exemplos de determinação e perseverança para que continuassem firmes na busca de seus ideais. Despertava a força de vontade de jovens e adultos que corriam atrás do tempo perdido. 

    Várias vezes conversamos sobre um fato que muito o incomodava: a população em situação de rua. A desigualdade social sempre surgia como tema e as conclusões que tínhamos apontavam para as ações solidárias pautadas na responsabilidade social, uma vez que eram raquíticas as esperanças nas propostas políticas dos gestores governamentais. Ele tinha consciência da necessidade de uma ação coletiva em função dos menos favorecidos, principalmente dessas pessoas que moram nas ruas.

    Quando a saúde dele não estava debilitada, residia em um bairro do segundo distrito de Petrópolis. Mudou-se para o centro histórico, por uma questão de mobilidade. E por considerar que o automóvel que possuía já não lhe era tão necessário, doou-o para ser rifado. O dinheiro arrecadado foi entregue a uma instituição de caridade.

    As nossas convicções religiosas eram diferentes, mas isso não era obstáculo. Quando há o respeito mútuo, é possível caminhar na mesma direção com o propósito de servir à humanidade, mesmo em simples ações para aliar a dor de um irmão. Eu o admirava muito pela visão humana e pelo fato de não medir esforços para prestar ajuda. Para ele, a vida era um bem precioso.

    Citei esse amigo falecido por duas razões: a primeira, porque a dor da sua partida ainda é latente, outra, porque não comungo com a ideia de que o mundo precisa de armas para viver em paz.

     O sequestro do ônibus na Ponte Rio-Niterói fez lembrar o caso do 174, que teve um desfecho mais trágico. Mas ambos os casos exibem as consequências do desequilíbrio não somente social, mas também os reflexos da neurose que há nos centros urbanos. Em países considerados ricos, isso também ocorre, portanto, tais fatos não estão relacionados somente a questões econômicas, há outros fatores que precisam ser analisados. 

    O jovem de 20 anos, autor do sequestro, não queria assaltar os passageiros, não queria “os pertences de ninguém”. Antes de ser assassinado, dizia que queria “fazer história”: “Só quero entrar para a História e, no fim do dia, vocês vão ter muitas histórias para contar.” 

    O problema não foi resolvido com os tiros do sniper. Ainda existem muitos jovens sem perspectiva de vida, com desequilíbrio psíquico, sem chance de uma ascensão social. 

    A pirotecnia política sobre a ação dos profissionais da segurança pública, com certeza, chocaria o amigo citado que hoje está na Luz Eterna.

     

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