• Reinaugurar a vida

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  • 26/maio 08:00
    Por Ataualpa A. P. Filho

    – Em que situação, você emprega a palavra absurdo? E a palavra inacreditável? E o impressionante?

    Ultimamente tenho usado, espontaneamente, algumas palavras diante de um estado de perplexidade, isto é, o conhecido “estado de choque”.  O “ficar chocado” surge como sinônimo de “atônito”, “abismado”. Para nós, que sonhamos com um mundo melhor, a realidade, às vezes, é vista como um pesadelo.

    As notícias, as imagens que vêm do Rio Grande do Sul trazem, à tona, traumas que ainda não estão superados, provocados pelas tragédias que marcaram a nossa cidade petropolitana.

    Conversando com um amigo sobre o estado de calamidade pública de municípios rio-grandenses, ele, depois de ouvir meus relatos tristes, descontraiu a nossa prosa com o seu sutil humor: “é verdade, nós temos ‘know-how’ no trágico”.

    A sensibilidade social não se restringe a bens materiais. Mas é preciso pensar no estado emocional de pessoas que lutaram a vida inteira para ter uma casa, um comércio, um automóvel como ferramenta de trabalho. E assim, em uma enxurrada, ver tudo desfeito, indo por água abaixo. A perda total, a perda de tudo que se construiu, deixa exposta, ainda mais, o valor da vida. Nessas horas, a solidariedade resgata a força da reconstrução.

    O recomeçar requer um esforço não somente voltado para os aspectos psicológicos, a fé também alicerça a nossa fortaleza interior. Não se deixar abater, apesar de ver tudo perdido, consiste no primeiro passo para reconquistar o que se perdeu. Por isso que nesses momentos, os familiares, os amigos, as pessoas altruístas que agem voluntariamente exercem um papel fundamental para que não haja desânimo.

    E aqui externo a minha admiração pelas pessoas que são comprometidas com o servir ao próximo, sem vínculo partidário e sem interesse escuso algum. Vale ressaltar que filantropia e caridade são diferentes do assistencialismo político que explora a miséria para manipular votos em período eleitoral. A filantropia tem as suas bases na solidariedade por razões humanitárias, independente de religião, ou etnia. A caridade é movida pelo amor ao próximo e exercida por meio de uma conduta cristã por acreditar em um Deus Supremo.

    A consciência da responsabilidade social precisa ser desenvolvida para que haja autonomia. A soberania do povo precisa ser mantida para libertar-se dos cabrestos eleitorais. Por essa razão, vejo, no processo educacional, um caminho que conduz ao pensamento crítico, capaz de resgatar o comprometimento com o bem comum.

    E, entre as diversas mobilizações para ajudar a população do Rio Grande do Sul, achei extremamente importante a campanha do projeto “A Ponte” que está empenhado na arrecadação de livros para as escolas públicas do Estado que ficaram completamente submersas. E devido a isso, perderam as suas bibliotecas. Na Rede Estadual de Ensino, 1.044 escolas ficaram sem seus acervos. Ainda não se tem o total de escolas municipais que foram atingidas, nem a quantidade de livros que foram perdidos.  Mas, pelos dados apresentados pela Secretaria Municipal de Educação de São Leopoldo, é possível ter uma noção do estrago. No referido Município, 18 escolas foram atingidas. Mais de 80 mil obras foram perdidas.

    Assim como as pessoas, assim como animais, os livros, as obras de artes também merecem uma atenção, porque carregam o patrimônio cultural de um povo. É muito triste saber que pessoas estão se aproveitando da situação de calamidade em que a população se encontra para cometer saques, desviar cestas básicas, desviar dinheiro das doações. No meu modo de ver, são crimes hediondos, lucram com a tragédia que ceifou dezenas de vidas. 

    A vivência em sociedade requer um comportamento cívico regido pelo bom senso que prioriza o bem comum. Quando os gananciosos passos do individualismo suplantam os interesses da coletividade, quando não há paridade, quando o elitismo predomina, estabelecendo divisões sociais, consequentemente, uma parcela da sociedade passa a viver em situações precárias.

    Há momentos em que o bom senso precisa suplantar as vaidades. “É necessário sair da ilha para ver a ilha, não nos vemos se não saímos de nós”, já escrevera Saramago em “O Conto da Ilha Desconhecida”. A cegueira da consciência é cruel, explora a miséria e não sente remorso.

    Vamos reinaugurar a vida. Vamos sair desta de mãos dadas. Voltaremos a ver, rever e aplaudir o pôr do sol no Guaíba. “E possa enfim o ferro/ comer a ferrugem/ o sim comer o não”, como afirmara o poeta João Cabral de Melo Neto, que tirou tantos versos da seca, autor de “Morte e Vida Severina”.

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