Regulamentação lenta ameaça marco de saneamento
A demora do governo Jair Bolsonaro em editar um dos decretos que regulamentam o marco legal do saneamento acendeu um alerta sobre a viabilidade dos prazos previstos na lei e uma eventual pressão para aumentá-los no Congresso. O movimento exigiria uma revisão do texto legal, o que já gera receio entre membros da equipe econômica, que querem evitar essa brecha a todo custo. O novo marco entrou em vigor em julho do ano passado com a promessa de universalizar os serviços de saneamento no País.
As regras que ditarão a capacidade financeira das empresas do setor – e poderão excluir companhias do mercado – ainda não saíram, mesmo com a data final para os grupos comprovarem que têm estofo para fazer os investimentos necessários se aproximando. O Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) defende que o prazo definido na lei – março de 2022 – é suficiente, sem necessidade de prorrogação.
Mas esse não é o discurso de parte do setor, principalmente das companhias públicas. Já entrou no radar da Associação das Empresas Estaduais de Saneamento Básico (Aesbe) uma eventual movimentação no Congresso para dilatar prazos. Segundo o presidente da Aesbe, Marcus Vinicius Neves, o assunto deve ser debatido na próxima assembleia da entidade, prevista para o início de março. Por ora, não há uma posição fechada. Neves também comanda a Companhia de Água e Esgotos da Paraíba (Cagepa).
O imbróglio envolve a decisão do ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, de publicar o aguardado decreto somente após deputados e senadores analisarem se derrubam ou mantêm os vetos do presidente Jair Bolsonaro a trechos do novo marco legal, o que é mal visto pela Aesbe. Sob orientação do MDR e da Economia, Bolsonaro barrou do texto a possibilidade de as companhias estaduais de saneamento renovarem por mais 30 anos os contratos para prestação de serviços nos municípios, fechados sem licitação. Pela nova lei, o processo concorrencial é regra. A ação do presidente irritou líderes do Congresso, empresas públicas e governadores.
Como já mostrou o Estadão/Broadcast, sistema de notícias em tempo real do Grupo Estado, a escolha é uma estratégia informal da pasta. O MDR não quer editar o decreto agora com receio de que as normas afetem o humor das bancadas e dos chefes estaduais, arriscando a manutenção do veto pelo Legislativo. A avaliação é de que a prorrogação dos contratos das empresas públicas estaduais – caso o veto caia – atrasaria a universalização. Hoje a prestação dos serviços é dominada pelas companhias estaduais, cuja capacidade de investimento é questionada. No Brasil, uma parcela de 46% da população ainda vive sem acesso a rede de esgoto e 16% não são atendidos por rede de abastecimento de água.
‘Por água abaixo’
Quanto a esse ponto, o Ministério da Economia tem a mesma posição. Mas membros da equipe de Paulo Guedes ouvidos reservadamente não acreditam que o decreto possa aguardar essa deliberação pelo Congresso. A área econômica queria ver o ato publicado ainda em janeiro, com receio de que o atraso dê força ao argumento de que os prazos estão curtos. O medo é de que o trabalho desenvolvido durante o ano passado no Parlamento vá por “água abaixo”.
O presidente da Aesbe afirma que o processo de adaptação ao novo marco é como uma “engrenagem”. Com uma delas paralisada, todo o resto é afetado. Os aditivos com as metas de universalização do novo marco precisam ser assinados até 31 de março de 2022. Até lá, o processo de comprovação da capacidade econômico-financeira precisará estar pronto. Outra data-limite, mais próxima, também preocupa. Os Estados têm até julho deste ano para definir as unidades regionais de saneamento. A elaboração dos planos de negócio das empresas, portanto, já demandaria as regras de capacidade que estarão no ato do Executivo, alega Neves: “Como eu vou montar os blocos regionais se eu não sei como serei avaliado?”, questionou presidente da Aesbe.
Especialista na estruturação e regulação de concessões e PPPs, o advogado Marcelo Rangel Lennertz concorda que os prazos estão apertados. Mas, para ele, ainda é prematuro cravar uma necessidade de alteração. “Se quiserem reinventar a roda, criando requisitos desnecessariamente detalhados e restritivos, isso pode inviabilizar os prazos que estão hoje previstos”, ponderou Lennertz.
Abcon vê manobra
A associação que representa as concessionárias privadas do setor, Abcon, vê a discussão sobre aumento de prazos como uma estratégia protelatória para a não execução do novo marco. “Não há nenhum impedimento, desde o dia da aprovação da lei, que os Estados e as companhias estaduais começassem a trabalhar na direção da lei”, disse o diretor da Abcon, Percy Soares. Para ele, independentemente do decreto, as companhias já são capazes de saber se têm capacidade ou não de levar em frente os investimentos necessários.
“A narrativa vai se transformando no objetivo principal, que é de não mexer no status quo das companhias estatais, postergar a competição, a abertura desse mercado”, avaliou Soares.
Influência
A associação das estatais, juntamente com os governadores, exerceu uma influência importante durante a tramitação do novo marco do saneamento. A Câmara só votou o projeto após ser incluída no texto a permissão para renovação dos contratos dessas empresas – agora barrada pelo veto. À época, o atual presidente da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), então líder do PP, era um dos parlamentares que chamava a atenção para a falta de acordo que existia em torno da proposta, até que veio a ‘colher de chá’ dada às empresas públicas.
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.